segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A cor do caráter

No quarto iluminado apenas pela luz da lua que entrava pelas janelas, os dois corpos movimentavam-se simultaneamente com suavidade e lentidão. Os músculos da pele dele, negra e suada, arqueavam-se a cada movimento que era feito com desejo e ternura sobre o corpo dela, que parecia brilhar em seu tom branco que parecia reluzir sobre a fraca luminosidade.

Entre murmúrios e gemidos ela arranhava suas costas e beijava sua boca, os dois guiados pela melodia que emanava do pequeno som ao lado da cama. Num rompante ele pára e tira os cabelos do rosto dela, observando-a. Ela abre os olhos encabulada e lhe sorri, daquele jeito meigo e selvagem. Recomeçando os movimentos ele a vê fechar novamente as pálpebras, pois, como havia lhe dito uma vez, as sensações em seu corpo eram tão fortes que ela não conseguia mantê-las abertas.

Mantendo uma mão em seu rosto e outro em sua cintura, ele beija sua boca com sofreguidão e desce na curva do pescoço ainda mais ávido. Os movimentos seguiam cada vez mais rápidos e profundos. Uma de suas mãos, destacando-se no contraste da pele branca e lisa como cetim, escorrega por sua barriga e enlaça sua cintura. Seus dentes arranham seu colo suavemente e, quase louco de prazer, ele escuta a respiração dela cada vez mais rápida e desesperada.

Erguendo-se sobre seus braços ele a fita enquanto intensifica a dança sobre ela, até senti-la arqueando-se e apertando-se em volta dele. Num grito, ela lhe agarra junto a si e ele se deixa levar junto a ela.

Na manhã seguinte, ela desperta preguiçosamente e o vê fitando-lhe com uma expressão apaixonada.

- O que você está olhando seu bobo? – pergunta, passando a mão em seu rosto.

- Nada, apenas vendo como você é perfeita. Incrivelmente perfeita. – responde beijando a mão dela.

Entre risos eles vestem-se e ela arruma os cabelos para que ninguém perceba que ela na verdade não estava no curso de especialização como disse que estaria.

Andressa tinha 23 anos e apesar de ainda morar com os pais, era quase independente. Havia se formado recentemente e agora fazia especialização, enquanto estudava como louca para conseguir estágio na empresa onde sempre sonhou trabalhar. Ela e Pedro haviam se conhecido no curso e a atração havia sido quase simultânea. Ele era solteiro, tinha 28 anos e morava com a irmã num apartamento próximo ao curso.

Saindo do motel onde estavam ela sentiu um aperto no coração por terem de se encontrar em motéis ao invés de irem para a casa dela ou o apartamento dele. Mas havia um problema. Ele era negro, e seu pai era a criatura mais racista que ela já conhecera.

Inicialmente teve receio de contar para ele o verdadeiro motivo de namorarem escondidos, mas quando percebeu que ele parecia triste e descobrir com sua irmã que ele achava que ela é que tinha preconceito por sua cor, resolveu lhe contar a verdade. Ele ficou com raiva é verdade, e quis fazer várias coisas que só não se concretizaram por que tinha de conter o pranto de Andressa que lhe pedia mil desculpas e lhe prometia que iria enfrentar o pai, nem que tivesse de sair de casa.

Os dias foram passando, que logo se transformaram em semanas e depois meses. Às vezes em pequenas conversas Andressa tentava inserir o assunto na família e revoltava-se todas as vezes ao ver o ódio cego e insensato de seu pai, que mostrava-se cada vez mais intolerante.

Havia decidido então sair de casa, e tinham combinado que morariam juntos assim que terminassem o curso de especialização. Os planos eram de alugar um apartamento com o dinheiro que não seria mais gasto com a mensalidade e quem sabe com mais esse diploma ela conseguiria a vaga desejada.

Encontravam-se no curso e em algumas noites que não tinha aula, ela saía de casa como se fosse para a universidade e encontravam-se. Às vezes, como naquele dia, passavam a noite juntos. Tudo corria bem e faltavam apenas três meses para a data marcada.

Ao entrar em casa naquela manhã, Andressa estava feliz, afinal era mais um dia próximo de seu objetivo. Às vezes sentia um peso por deixar sua mãe e irmãos sós, mas afinal, o irmão de 19 anos já havia absorvido as idéias preconceituosas do pai, e a mãe, apesar de não concordar com ele, nunca o enfrentava, baixando a cabeça para tudo que era dito ali. E um dia Andressa teria de seguir com sua vida. Estava sufocando embaixo da autoridade narcisista do pai.

Ia chegando à cozinha quando ouviu comentários que a fizeram retesar-se. O noticiário local falava de um crime de estupro que havia ocorrido na cidade na noite anterior, e o acusado era negro. Como sempre seu pai fazia os comentários de costume que já a estavam deixando nauseada.

- Tinha de ser negro. O que mais essa gente sabe fazer se não infringir a lei? Bando de vagabundos, ladrões drogados. Acho que a pobre menina deve preferir estar morta agora. Ele devia pelo menos tê-la matado, assim ela não passaria pela humilhação e o pesadelo de lembrar-se daquele demônio, preto como o próprio inferno.

- Pelo amor de Deus pai. Do jeito que o senhor fala parece que o crime teria sido menos terrível se tivesse sido cometido por uma pessoa branca.

- Oh, olhem só! A grande defensora dos pretinhos. O que você entende de coisa alguma?

- Entendo que os brancos também são tão maus e cruéis como os de qualquer outra cor. E o que define isso não é o tom da pele, mas o caráter. – fala ela com o queixo erguido desafiadoramente.

- Mas que idiotice. É claro que todo preto, mais cedo ou mais tarde, fará algum crime na vida. É só olhar qualquer jornal e ver que a maioria dos vagabundos das páginas policiais é negra.

- E o que o senhor diz desses políticos corruptos que roubam de uma vez só, milhões e milhões? Que por sua posição, podemos dizer que estão tirando da boca das famílias pobres e das crianças famintas, que matam então por desviar dinheiro que deveria ir para médicos e hospitais? Na televisão vemos também que a maioria dos políticos é branca.

Com desdém e raiva por ser desafiado, o pai de Andressa fala com escárnio:

- Pelo menos eles roubam de maneira mais bonita e inteligente. Até nisso somos melhores.

- Não me inclua nesse “somos” papai. Eu não sou assim.

- Você fala isso maninha, diz essa história que não é superior, que não existe diferença, mas eu nunca te vi namorando nenhum rapaz negro. – o irmão de Andressa entra na cozinha, mantendo-se instantaneamente do lado do pai.

- Não viu ainda, mas eu posso namorar quem eu quiser. Seja de qual cor for.

O pai de Andressa fica vermelho de raiva e engasga com as palavras.

- Minha filha! – fala sua mãe, Rosana. –Não provoque seu pai desse jeito.

- Cale a boca Rosana, não se meta que eu sei como tratar essa malcriada. – e virando-se para Andressa, esbraveja – você não se atreveria a fazer isso só pra me desafiar...

- Me atreveria sim papai, mas não seria para desafiá-lo não. Nem tudo se trata de você. E eu posso me casar com qualquer homem, desde que eu o ame, e que ele não me trate tão mal como você trata a mamãe.

Quando fechou a boca, Andressa já sabia o que iria acontecer, e esperou olhando nos olhos do pai, a bofetada que veio forte e certeira, desorientando-a e a derrubando sobre a mesa da cozinha.

- Você pode me bater, mas não pode me dominar. O que você faria? Expulsaria-me de casa? Eu não dependo de você, eu posso muito bem me virar sozinha.

Aproximando-se da filha ameaçadoramente, seu pai diz apenas umas últimas palavras num tom baixo e terrível:

- Se você se atrevesse a me envergonhar assim eu mataria você. Não dei vida a ninguém para vê-la agarrada a um negro.

Ele vai saindo deixando Andressa chorando baixinho com as lágrimas lhe queimando o rosto. Então antes de cruzar a porta diz indiferente:

- E eu acho que você conhece o herói negro estuprador. É o Pedro, aquele que estuda com você.

Num salto Andressa sai do sofá e vai em direção à porta de saída.

- Para onde você vai sua imbecil? – grita o pai com escárnio - Se encontrar com o vagabundo?

Apenas com a bolsa que tinha nas mãos e a roupa que vestia, Andressa sentiu que havia adiado aquele momento injustificadamente e por tempo demais. Ela percebeu que não podia mais viver com aquele homem, que era cruel demais para sequer ser chamado de pai de alguém. Com uma força que ela nunca imaginou ter, foi em direção ao homem que tapava a porta de saída e falou num tom seguro e firme, que não imaginava ser capaz.

- Pra onde eu vou não importa. Faça de conta que você me matou como prometeu. O Pedro não estuprou essa garota quem quer que seja, e eu sei disso por que ele passou toda a noite de ontem comigo, fazendo amor na cama de um motel. Há meses planejamos nossa fuga e agora eu vejo que não há por que esperar mais.

Seu pai permaneceu paralisado, sem qualquer reação a não ser os olhos injetados e sem capacidade de fazer qualquer gesto, como se soubesse que não poderia feri-la ou impedi-la.

- E mais uma coisa, - falou Andressa antes de passar pela porta - quando eu tiver um filho, não precisa se preocupar, eu jamais direi a ele que você é seu avô. Seria vergonhoso demais saber que é da mesma família de alguém tão mesquinho e insignificante. Adeus.

E, batendo a porta atrás de si, Andressa saiu para libertar o homem que amava e tentar contribuir para um mundo que, no que dependesse dela, seria mais justo e correto dali para frente.

Um comentário:

F. disse...

Lindo conto... adoro... siga adelante com suas creacioes.. Um saludo.

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