segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A cor do caráter

No quarto iluminado apenas pela luz da lua que entrava pelas janelas, os dois corpos movimentavam-se simultaneamente com suavidade e lentidão. Os músculos da pele dele, negra e suada, arqueavam-se a cada movimento que era feito com desejo e ternura sobre o corpo dela, que parecia brilhar em seu tom branco que parecia reluzir sobre a fraca luminosidade.

Entre murmúrios e gemidos ela arranhava suas costas e beijava sua boca, os dois guiados pela melodia que emanava do pequeno som ao lado da cama. Num rompante ele pára e tira os cabelos do rosto dela, observando-a. Ela abre os olhos encabulada e lhe sorri, daquele jeito meigo e selvagem. Recomeçando os movimentos ele a vê fechar novamente as pálpebras, pois, como havia lhe dito uma vez, as sensações em seu corpo eram tão fortes que ela não conseguia mantê-las abertas.

Mantendo uma mão em seu rosto e outro em sua cintura, ele beija sua boca com sofreguidão e desce na curva do pescoço ainda mais ávido. Os movimentos seguiam cada vez mais rápidos e profundos. Uma de suas mãos, destacando-se no contraste da pele branca e lisa como cetim, escorrega por sua barriga e enlaça sua cintura. Seus dentes arranham seu colo suavemente e, quase louco de prazer, ele escuta a respiração dela cada vez mais rápida e desesperada.

Erguendo-se sobre seus braços ele a fita enquanto intensifica a dança sobre ela, até senti-la arqueando-se e apertando-se em volta dele. Num grito, ela lhe agarra junto a si e ele se deixa levar junto a ela.

Na manhã seguinte, ela desperta preguiçosamente e o vê fitando-lhe com uma expressão apaixonada.

- O que você está olhando seu bobo? – pergunta, passando a mão em seu rosto.

- Nada, apenas vendo como você é perfeita. Incrivelmente perfeita. – responde beijando a mão dela.

Entre risos eles vestem-se e ela arruma os cabelos para que ninguém perceba que ela na verdade não estava no curso de especialização como disse que estaria.

Andressa tinha 23 anos e apesar de ainda morar com os pais, era quase independente. Havia se formado recentemente e agora fazia especialização, enquanto estudava como louca para conseguir estágio na empresa onde sempre sonhou trabalhar. Ela e Pedro haviam se conhecido no curso e a atração havia sido quase simultânea. Ele era solteiro, tinha 28 anos e morava com a irmã num apartamento próximo ao curso.

Saindo do motel onde estavam ela sentiu um aperto no coração por terem de se encontrar em motéis ao invés de irem para a casa dela ou o apartamento dele. Mas havia um problema. Ele era negro, e seu pai era a criatura mais racista que ela já conhecera.

Inicialmente teve receio de contar para ele o verdadeiro motivo de namorarem escondidos, mas quando percebeu que ele parecia triste e descobrir com sua irmã que ele achava que ela é que tinha preconceito por sua cor, resolveu lhe contar a verdade. Ele ficou com raiva é verdade, e quis fazer várias coisas que só não se concretizaram por que tinha de conter o pranto de Andressa que lhe pedia mil desculpas e lhe prometia que iria enfrentar o pai, nem que tivesse de sair de casa.

Os dias foram passando, que logo se transformaram em semanas e depois meses. Às vezes em pequenas conversas Andressa tentava inserir o assunto na família e revoltava-se todas as vezes ao ver o ódio cego e insensato de seu pai, que mostrava-se cada vez mais intolerante.

Havia decidido então sair de casa, e tinham combinado que morariam juntos assim que terminassem o curso de especialização. Os planos eram de alugar um apartamento com o dinheiro que não seria mais gasto com a mensalidade e quem sabe com mais esse diploma ela conseguiria a vaga desejada.

Encontravam-se no curso e em algumas noites que não tinha aula, ela saía de casa como se fosse para a universidade e encontravam-se. Às vezes, como naquele dia, passavam a noite juntos. Tudo corria bem e faltavam apenas três meses para a data marcada.

Ao entrar em casa naquela manhã, Andressa estava feliz, afinal era mais um dia próximo de seu objetivo. Às vezes sentia um peso por deixar sua mãe e irmãos sós, mas afinal, o irmão de 19 anos já havia absorvido as idéias preconceituosas do pai, e a mãe, apesar de não concordar com ele, nunca o enfrentava, baixando a cabeça para tudo que era dito ali. E um dia Andressa teria de seguir com sua vida. Estava sufocando embaixo da autoridade narcisista do pai.

Ia chegando à cozinha quando ouviu comentários que a fizeram retesar-se. O noticiário local falava de um crime de estupro que havia ocorrido na cidade na noite anterior, e o acusado era negro. Como sempre seu pai fazia os comentários de costume que já a estavam deixando nauseada.

- Tinha de ser negro. O que mais essa gente sabe fazer se não infringir a lei? Bando de vagabundos, ladrões drogados. Acho que a pobre menina deve preferir estar morta agora. Ele devia pelo menos tê-la matado, assim ela não passaria pela humilhação e o pesadelo de lembrar-se daquele demônio, preto como o próprio inferno.

- Pelo amor de Deus pai. Do jeito que o senhor fala parece que o crime teria sido menos terrível se tivesse sido cometido por uma pessoa branca.

- Oh, olhem só! A grande defensora dos pretinhos. O que você entende de coisa alguma?

- Entendo que os brancos também são tão maus e cruéis como os de qualquer outra cor. E o que define isso não é o tom da pele, mas o caráter. – fala ela com o queixo erguido desafiadoramente.

- Mas que idiotice. É claro que todo preto, mais cedo ou mais tarde, fará algum crime na vida. É só olhar qualquer jornal e ver que a maioria dos vagabundos das páginas policiais é negra.

- E o que o senhor diz desses políticos corruptos que roubam de uma vez só, milhões e milhões? Que por sua posição, podemos dizer que estão tirando da boca das famílias pobres e das crianças famintas, que matam então por desviar dinheiro que deveria ir para médicos e hospitais? Na televisão vemos também que a maioria dos políticos é branca.

Com desdém e raiva por ser desafiado, o pai de Andressa fala com escárnio:

- Pelo menos eles roubam de maneira mais bonita e inteligente. Até nisso somos melhores.

- Não me inclua nesse “somos” papai. Eu não sou assim.

- Você fala isso maninha, diz essa história que não é superior, que não existe diferença, mas eu nunca te vi namorando nenhum rapaz negro. – o irmão de Andressa entra na cozinha, mantendo-se instantaneamente do lado do pai.

- Não viu ainda, mas eu posso namorar quem eu quiser. Seja de qual cor for.

O pai de Andressa fica vermelho de raiva e engasga com as palavras.

- Minha filha! – fala sua mãe, Rosana. –Não provoque seu pai desse jeito.

- Cale a boca Rosana, não se meta que eu sei como tratar essa malcriada. – e virando-se para Andressa, esbraveja – você não se atreveria a fazer isso só pra me desafiar...

- Me atreveria sim papai, mas não seria para desafiá-lo não. Nem tudo se trata de você. E eu posso me casar com qualquer homem, desde que eu o ame, e que ele não me trate tão mal como você trata a mamãe.

Quando fechou a boca, Andressa já sabia o que iria acontecer, e esperou olhando nos olhos do pai, a bofetada que veio forte e certeira, desorientando-a e a derrubando sobre a mesa da cozinha.

- Você pode me bater, mas não pode me dominar. O que você faria? Expulsaria-me de casa? Eu não dependo de você, eu posso muito bem me virar sozinha.

Aproximando-se da filha ameaçadoramente, seu pai diz apenas umas últimas palavras num tom baixo e terrível:

- Se você se atrevesse a me envergonhar assim eu mataria você. Não dei vida a ninguém para vê-la agarrada a um negro.

Ele vai saindo deixando Andressa chorando baixinho com as lágrimas lhe queimando o rosto. Então antes de cruzar a porta diz indiferente:

- E eu acho que você conhece o herói negro estuprador. É o Pedro, aquele que estuda com você.

Num salto Andressa sai do sofá e vai em direção à porta de saída.

- Para onde você vai sua imbecil? – grita o pai com escárnio - Se encontrar com o vagabundo?

Apenas com a bolsa que tinha nas mãos e a roupa que vestia, Andressa sentiu que havia adiado aquele momento injustificadamente e por tempo demais. Ela percebeu que não podia mais viver com aquele homem, que era cruel demais para sequer ser chamado de pai de alguém. Com uma força que ela nunca imaginou ter, foi em direção ao homem que tapava a porta de saída e falou num tom seguro e firme, que não imaginava ser capaz.

- Pra onde eu vou não importa. Faça de conta que você me matou como prometeu. O Pedro não estuprou essa garota quem quer que seja, e eu sei disso por que ele passou toda a noite de ontem comigo, fazendo amor na cama de um motel. Há meses planejamos nossa fuga e agora eu vejo que não há por que esperar mais.

Seu pai permaneceu paralisado, sem qualquer reação a não ser os olhos injetados e sem capacidade de fazer qualquer gesto, como se soubesse que não poderia feri-la ou impedi-la.

- E mais uma coisa, - falou Andressa antes de passar pela porta - quando eu tiver um filho, não precisa se preocupar, eu jamais direi a ele que você é seu avô. Seria vergonhoso demais saber que é da mesma família de alguém tão mesquinho e insignificante. Adeus.

E, batendo a porta atrás de si, Andressa saiu para libertar o homem que amava e tentar contribuir para um mundo que, no que dependesse dela, seria mais justo e correto dali para frente.

sábado, 14 de novembro de 2009

Rosa Negra



Aimeé andava pela rua rindo por dentro dos olhares que recebia pelo seu cabelo estranho e visual diferente. Mesmo sendo numa cidade grande, e nos dias de hoje, as pessoas continuavam a ter preconceitos, pensava consigo mesma, enquanto puxava o zíper da jaqueta preta de couro, para protegê-la do frio, cobrindo a camiseta de listras vermelhas e negras. Seus cabelos pretos e lisos caíam até a altura dos ombros, espalhados pelo corte desigual e cheio de pontas. No rosto o piercing prateado na sobrancelha chamava tanta atenção quanto seus olhos escuros, que embora parecessem maquiagem eram naturalmente sombrios.

Um senhor que vinha distraído, ao vê-la já há uns dois metros de distância, pareceu assustar-se quando a viu, tão próxima, e num rompante foi para a rua com tanta rapidez que quase foi atingido por um carro que passava.

- Caramba Mia, o cara preferiu ser atropelado a andar do seu lado...

Olhando para o lado ela viu Demétrius aproximando-se.

- Poderia ser o mais seguro para ele se fosse há uns setecentos anos atrás... - responde Aimeé num tom displicente e irônico.

Rindo eles seguem até chegarem perto de uma rua escura e abandonada.

- Tá bom, chega de andar. - fala Demétrius.

E num salto imperceptível para qualquer pessoa, segura o braço de Aimeé e desaparecem no ar.

* * *

- Deixa de bobagens Aisha, é só um show de rock, o que você acha que eles vão fazer lá? Rituais onde chupam seu sangue?

- Eu sei, eu sei Cris, mas eu não gosto de músicas pesadas. Você sabe...

As duas amigas discutiam enquanto Cristina penteava os cabelos e dava os últimos retoques na maquiagem.

A custo de muita insistência tinha convencido sua amiga Aisha a acompanhá-la ao show que ocorreria dentro de alguns minutos. Ela bem sabia o quanto a amiga não gostava de shows de rock. Tão boba que chegava a mudar de canal, quando o multishow mostrava algum clipe um pouco mais inspirado das bandas de metal do momento.

Mas elas eram amigas inseparáveis desde criança, e essa não seria a primeira nem a última vez que uma delas ajudava a outra, mesmo tendo de fazer coisas um pouco desagradáveis. Cristina estava namorando o guitarrista de uma das bandas que se apresentaria no festival, mas, mesmo a cinco meses de completar a maior idade, seus pais não a deixavam ir. Então ela inventou que iria para a festa de aniversário de uma amiga e claro que Aisha ia junto.

Seus pais acreditaram e consentiram, principalmente depois de ligar para os pais de Aisha e confirmar que ela iria também.

Aisha tinha mentido para os pais pela primeira vez na vida. Mas Cristina faria a mesma coisa por ela. E com esse último pensamento lhe passando pela cabeça, ela sai da frente do espelho, vai até a amiga que olhava desanimada para o guarda-roupa procurando algo para vestir e a abraça, cochichando em seu ouvido:

- Eu amo você Aisha... Obrigada irmãzinha.

* * *

- Você sentiu aquele cheiro no parque a tarde Mia? Era um deles... Eu pensei que eles já tivessem aprendido a não entrar no nosso território.

Demétrius estava sentado na poltrona de um apartamento caro e confortável. Sua cabeça pendia de cima do encosto e embora Aimeé estivesse há quatro cômodos de distância, na cozinha preparando um lanhe, ele sabia que ela podia ouvi-lo muito bem.

- Ah, quer saber? Que bom que um deles entrou aqui. As coisas já estavam ficando chatas... – responde ela, no mesmo tom, baixo e melódico.

- Há, há... Entediada Aimeé? – e num salto ele estava ao seu lado no instante preciso em que ela tapava o pote do creme que havia passado no pão. – Isso não é uma sensação muito boa para quem tem a eternidade pela frente, não é?

- Ah, não enche Demétrius.

Num movimento rápido como o bater das asas de um beija-flor ela finca a faca na mão de Demétrius. Ou pelo menos tenta. Ainda mais rápido do que os quase trezentos milhões de metros por segundo da velocidade da luz, ele retira a mão, pega a faca e corta fora as cascas do pão.

- Bem, deveria usar o tempo vago para treinar suas habilidades, lesminha...

Olhando fixamente para os olhos de Demétrius, Aimeé espera alguns segundos até que ele deixa a faca cair de sua mão e fica paralisado. Isso poderia assustar qualquer um, mas ele permanecia parado, porém com uma expressão enfadonha no rosto.

- Eu não preciso ser tão rápida já que consigo paralisar qualquer um. – fala ainda olhando em seus olhos. – poderia deixar você ai o dia inteiro...

E suspirando olha para o lado, dando antes uma mordida em seu sanduíche.

- Mas enfim se eu fizesse isso, como você poderia me acompanhar ao festival hoje?

Ela caminha até a sala onde estava Demétrius e senta-se no sofá, zapeando os canais rapidamente, até achar um seriado de terror. Uns cinco minutos depois, Demétrius volta à sala massageando o pescoço, no exato instante em que surge um vampiro na tela sendo afugentado pela imagem de um crucifixo e em seguida destruído por uma estaca no peito.

- Acho que as feras gostariam que fosse fácil assim acabar conosco.


* * *


Na noite escura, com a música ensurdecedora saindo pelos alto-falantes e pessoas estranhas vestidas de preto por todos os lados, Aisha não via a hora de Cristina resolver ir embora. Mas pelo jeito que ela se divertia, cantando as músicas do namorado, muito empolgada e pulando junto com aquela massa humana e bizarra, ela percebeu que iria demorar um pouco mais do que gostaria.

No começo até tentou se enturmar, mas ao olhar para o lado e ver alguns garotos com maquiagem que imitava sangue saindo pela boca e meninas com coleiras de taxas no pescoço, desistiu. De vez em quando Cristina olhava para o lado, animada, e a chamava para dançar. Ela apenas dava um risinho amarelo e levantava os polegares.

Olhando para o lado ele vê um par de olhos cinza a encará-la. Ele a olhava de uma maneira fixa, mas ao mesmo tempo intrigante. Quando conseguiu tirar o foco dos olhos e observou o rosto do estranho, ela viu que ele aparentemente não tinha nada demais, mas mesmo assim algo parecia querer puxá-la para perto dele.

Do outro lado do salão, Aimeé falava para Demétrius:

- Qual o problema Demétrius? Está com fome?

- Anh, o quê?

- Você parece que quer devorar aquela menina...

- Deixa de bobagens, você sabe que não precisamos mais disso. É que ela... Sei lá, não deve ser nada demais. Talvez alguns vestígios de predador que ainda estejam no nosso DNA.

De repente um cara vestido a rigor para o evento, vira-se para Aisha e lhe agarra, beijando-a com um hálito horrível de bebida e algo mais que ela não soube identificar. Gritando ela o empurra, mas no esforço, não calcula bem a força e cai no chão.

- Meu Deus Aisha! Você está bem? – pergunta Cristina aproximando-se dela.

- Não! Quer saber, não estou nada bem. Você sabia que eu não queria vir pro raio dessa festa e ficou me enchendo pra poder ver esse idiota do seu namorado. – grita Aisha descontrolada.

- Aisha, eu...

- Você, você, você... Esse é o problema Cris, é sempre você.

E levantando-se rapidamente sai empurrando a multidão que continuava a dançar. Cristina inicialmente fica paralisada em choque pela reação da amiga e pelas coisas que ela lhe disse. Ela nunca tinha visto Aisha assim. Por um instante teve vontade de deixá-la ir, ela não merecia ter ouvido aquilo, mas então se lembrou que o local da festa era perigoso e que Aisha não conseguiria ir embora sozinha.

Fora do galpão onde o som continuava, Cristina olha para os dois lados tentando adivinhar para onde Aisha tinha seguido. Viu então de relance ela entrar num beco escuro, e xingando a loucura da amiga foi atrás dela. Porém ao entrar no beco viu que não era Aisha, mas um homem que tinha entrado lá.

Ao vê-la entrando ele parou e com um sorriso sádico continuou a olhá-la de um jeito curioso e mal. Cristina tentou voltar, mas ao virar-se para correr viu que o homem, que antes estava no fim do beco, agora estava à sua frente. Ela voltou de costas até encontrar a parede no final da rua. O homem começou a aproximar-se calmamente, como uma fera quando já havia encontrado sua presa e deliciava-se com seu pavor.

De repente ele é acertado na cabeça por uma pedra e vira-se com um urro que mais parecia de um animal. Aisha, com outras pedras nas mãos gritava:

- Vai embora Cristina! Corre!

Ela tenta correr em direção à amiga, mas é lançada com uma força descomunal contra a parede e desmaia. Aisha grita e instintivamente corre em direção à Cristina e percebe que não deveria ter feito isso. O homem agora está muito próximo dela.

- Você parece deliciosa.

Aisha sente seu sangue gelar ao imaginar o que está prestes a acontecer. Abraçando o corpo desacordado de Cristina, chora baixinho com a cabeça baixa. Porém, ao invés de atacá-la, o homem ajeita seu cabelo lentamente, pondo-o atrás da orelha. E ao invés de feri-la ele aproxima-se de seu pescoço como se fosse beijá-la. Com movimentos lentos e suaves.

Ao encostar seus lábios em seu pescoço, ela sente frio e já ia gritar novamente, pois de alguma maneira não conseguia mais se mover, quando sentiu dentes rasgando sua pele. E a dor que sentiu não foi algo comum, parecia que a mordida entrava em sua alma. Sentia como se sua vida estivesse fugindo do seu corpo.

Queria gritar, mas não podia, sentia seu coração secando, batendo cada vez mais devagar. Teve a sensação exata da morte, e ao abrir os olhos para ver o mundo pela última vez, a dor parou por um instante.

Ela viu os olhos cinza que a observavam mais cedo e ouviu murmúrios rápidos e baixos. Pensou ter ouvido um grito agonizante, mas não teve certeza. Sentiu o corpo entorpecido e resolveu desistir de uma vez por todas quando sentiu outra dor. Dessa vez mais forte, parecia que lhe injetavam gelo nas veias onde antes tinha sangue.

Ouviu o dono dos olhos cinza dizer baixinho em seu ouvido:

- Durma agora, não se preocupe com a dor. Não se preocupe com nada, o pior já passou.


Continua...

sábado, 31 de outubro de 2009

Caçadores de Almas


- Há quantos ciclos ele está nessa casca?!

- Creio que há uns cinquenta ciclos, do nosso mundo. Desse uns dezoito ciclos.

Joel está no chão, deitado próximo a uma poça de água,em um dos muitos becos sujos de Curitiba. Sua mochila ainda está do seu lado, seu caderno está um pouco para fora. Sua morte foi lenta e desesperadora. Foram dez barulhos ouvidos, dez impactos no peito e abdômem. Sem defesa, sem alardes, sem culpados, sem um por quê.

Eram vinte e três horas quando ele saía da Universidade Federal Do Paraná. Despediu-se de um amigo e como sempre seguia na Rua General Carneiro. Gostava de pegar o primeiro ônibus que passava logo que saía, nunca se metia em baladas, até mesmo porque a sua condicional não o permitia.

Seus passos eram largos como sempre. Ele não podia se atrasar. Uma breve carreira era como um ritual e até a Rua Amintas de Barros ele não parou. Não havia nada estranho aos seus ouvidos e olhos, não até uma explosão que aconteceu exatamente em frente a um pequeno estacionamento do Instituto de Medicina e Cirurgia do Paraná. 


Os milésimos de segundo em que seu cérebro ficou acordado foram suficientes para ele ter sensações das quais ele nem mesmo sabia que existiam. Uma força descomunal, um olfato nunca tido, uma visão mágica. Seu corpo parecia ser outro. Mas foram só alguns milésimos de segundo e então, ouviram-se dez barulhos que se seguiram de dez impactos no corpo de Joel e de repente ele não sabia mais onde estava.

////

Isso me parece familiar, mas onde estou? Não consigo me lembrar. Que lugar é esse?

Essas perguntas enchiam sua cabeça. Em um instante estava em uma rua da cidade que ele conhecia tão bem, em outro no meio do nada, em um campo de vegetação rasteira e seca.  Um campo vasto com montanhas enormes fechando tudo. O vento estava sereno, batia levemente em seu corpo e aquilo tudo lhe fazia bem. O cheiro lhe fazia bem. Dava-lhe paz. Mas de repente o vácuo começa a sugar seu corpo, e violentamente um desconforto toma conta de tudo. Ele tenta lutar, imprime força, quer fugir daquilo que não sabe o que é, mas nada que fazia parecia adiantar; Era fraco para aquela força.

Ele sente seu corpo novamente no chão, os cheiros que estão entrando agora no seu nariz, são familiares, mas não são aqueles de alguns segundos atrás. Ele já sabia, estava de volta à rua onde todas aquelas sensações estranhas tinham começado.

- Ele se extinguiu, não será mais preciso esperar.

A voz feminina que fala de uma tal extinção, vinha de próximo de seu corpo, ele sentia isso e queria se mexer mas não sabia por que seu corpo não respondia. Uma dor estranha cobre seu corpo como  se fosse suas vestes, lhe toma por completo.

O corpo de Joel está no chão com dez perfurações aparentemente de balas e depois de um relutante esforço seu corpo responde.

“Ele mexe-se, temos que extingui-lo.” Os sons vinham de distante, possivelmente há cinco ou sete metros, sentia Joel, então um calor insuportável toma seu corpo e desse instante em diante ele estava fora de controle.

Explosões irrompem o asfalto, pedaços da pista  atingem tudo em volta, cortes profundos são desenhados no chão em um perímetro de vinte metros.

Ganglo e Virg atacam incessantemente.

Ganglo é um ser grande, um homem de um corpo brutal, dois metros e cinquenta de altura. Cada parte do seu corpo é absurdamente musculosa, seus braços são cobertos por uma espécie de armadura metálica e nela pedras brilhantes fazem os enfeites. Duas pistolas estão em suas mãos sendo usadas sem qualquer pudor, delas não saem tiros comuns mais sim de pura luz e energia. Virg é uma mulher também grande, porém de um corpo bem feminino, cheio de curvas. Se não fosse pelo seu instinto assassino ela seria até bem sexy, mas esse não é o caso. As duas espadas que dançam no ar são tão letais quanto os olhos azuis daquela mulher. Sobre suas lâminas uma cor vermelha é ofuscante. Um pérola de cor esverdeada é um ornamento que fica no meio das espadas. Lindas e mortais.

O desespero era mais que evidente nas palavras e ações dos dois que atacavam o garoto.

- Não podemos o deixar despertar, ou estarmos mortos - Grita Virg enquanto tenta acertar suas espadas – Não podemos!...

- Infelizmente eu sei disso.

Responde Ganglo, enquanto atira contra um ser de aparência tão frágil.

Se Joel soubesse o que estava fazendo ou o que estava acontecendo talvez até se assustasse, mas não era o caso. O seu corpo estava com dez grandes perfurações, que até dois minutos atrás sangravam, ele estava morto no chão e agora com um tipo de olhar paralisante, pupilas embranquiçadas azul celeste, movimenta-se tão velozmente quanto a luz. Conseguindo livrar-se de todos os ataques expelidos por Ganglo e Virg. Ele está intacto e com certeza não é mais o mesmo garoto de algumas horas atrás.

Uma luta tremenda e ímpar acontece em um pequeno espaço, em frente a um prédio do governo do Paraná. Se  tudo que ali em volta se encontrava não estivesse paralisado por um tipo de magia, o tumulto estava feito. Porém desde que aqueles dois seres esquisitos surgiram do nada, rasgando o espaço que conhecemos como ar, tudo foi paralisado, eles não queriam testemunha. Com certeza vieram para matá-lo, mas algo estava dando errado. Tanto o homem quanto a mulher suavam muito, estavam mais que ofegantes, estavam a cada segundo ficando mais fracos. Em um tempo considerável desde que Joel foi atingido por eles e foi ao chão, ele ainda não tinha aberto à boca, e quando abriu não foi de uma sutileza normal.

- Já cansaram Ganglo e Virg? – Pergunta entre sorrisos - Pensei que tinham melhorado... Vou facilitar pra vocês. Acho que já brincamos o bastante.

Enquanto os atacantes de Joel ouviam os últimos sons de sua boca, também sentiam seus corpos queimarem com algo incomparável. Ele os atingia com uma luz a qual deixou os dois sem mais qualquer tipo de reação...



Continua...

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Um novo começo


Bianca está parada já a meia hora, sentada no chão frio e molhado no banheiro a olhar aquela tirinha de papel em suas mãos. Um pedacinho ínfimo e quase insignificante, mas que traz em duas pequeninas linhas azuis, uma resposta definitiva que irá transformar sua vida radicalmente dali para frente. Desde que os cinco minutos necessários se passaram e ela, que não havia tirado os olhos do exame, percebeu o que as duas linhas significavam, não conseguiu se levantar ou esboçar qualquer reação.

Ela tinha de ficar pelo menos chocada. E isso ela estava, mas não conseguia ficar triste, ou com raiva, ou sequer desesperada como seria de se esperar.

Ela tinha 25 anos era solteira, formada em engenharia e funcionária de uma firma de sucesso conhecida nacionalmente. Morava sozinha num apartamento pequeno, mas confortável e não saia muito desde que rompera um relacionamento de 3 anos há cerca de seis meses.

Saía só para algumas festas muito de vez em quanto com as amigas, que em algumas vezes praticamente empurravam-a escada abaixo. A festa que havia ido a dois meses atrás porém ela não teve como inventar desculpas. Era seu aniversário e elas não iriam admitir que ela passasse a noite em casa. Nem adiantou propor um cineminha e um jantar íntimo. As amigas a arrastaram para uma rave e ela acabou se divertindo muito.

Bebeu bastante, mas não o suficiente para ficar bêbada, só um pouco mais animada. Portanto ela não podia agora culpar a bebida por ter feito o que fez. Acabar a noite nos braços de um homem, lindo, charmoso e muito sedutor. Ela sabia exatamente o que estava fazendo quando aceitou o seu convite para esticarem a noite em um motel. Ela não pôde resistir quando ele falava aquelas coisas tão doces e lindas para ela. Nesse ponto talvez a bebida tenha afetado seu discernimento, ela geralmente custava a acreditar no que um homem falava, ou talvez tenha sido apenas a carência de afeto e atenção. Mas seja lá o que for, também a fez esquecer de usar camisinha.

Ela sabia o que podia acontecer se não usasse. Todo mundo sabe hoje em dia. E então pela primeira vez lhe veio o pensamento, de que, se por acaso ela realmente não quisesse mesmo no fundo de seu ser, que acontecesse o que aconteceu.

Então Bianca sentiu doer dentro de si e apertou as mãos em torno de seu corpo, num abraço que ela bem gostaria de não precisar dar a si mesma.

Ela queria um filho. Ela sempre quis. Esse havia sido o motivo que a levou a terminar com o namorado. Ele nunca estava pronto. Conversavam bastante sobre isso, sempre. Ela falava de nomes escolhidos, escolas que gostaria que seus filhos estudassem ou outras coisas do tipo. Devia ter percebido quando notava o desinteresse dele. Mas mentia para si mesma dizendo apenas que ainda não era o momento certo dele.

Passaram-se meses, depois anos e ele já começava a falar em casamento com ela. Algumas frases do tipo, “quando estivermos em nossa casa”, ou “depois que morarmos juntos” começaram a ser ditas por ele. Porém filhos nunca eram mencionados, até que um dia quando, como em várias vezes Bianca incluía crianças nos planos, ele falou a frase definitiva: “Eu não quero ter filhos.”

Cinco palavras que pareciam impossíveis para Bianca absorvê-las. Como assim não queria? Todo mundo quer. Retrucou ela.

Aquela noite depois de brigas e choros ela o mandou embora. Ele apenas assentiu tristemente, afirmando ainda que a amava muito, que sempre a tinha amado. Bianca chorou por três semanas, indo apenas para o trabalho onde executava suas tarefas quase como um robô. Chorou pelo homem que ela também amava e chorou pela criança que nunca teria. Ela queria um filho sim, mas um filho dele. Queria que fossem uma família completa e feliz, mas não imaginava essa família sem crianças.

E agora olhando para o resultado do exame comprado pouco antes quando ela finalmente tinha tomado coragem de assumir o que o atraso de sua menstruação significava, ela percebia que iria ser mãe. Aliás tecnicamente poderia já se considerar como uma mãe. E passando a mão carinhosamente em sua barriga ela teve consciência de que tinha uma vida lá dentro. O seu filho

Se perguntava se devia contar a alguém. Ou melhor, se devia contar ao André, o pai da criança, afinal teria de contar as pessoas porque mais cedo ou mais tarde todos iriam saber.

Ela sabia como encontrá-lo, só não sabia se realmente era necessário. Ela não o queria. Não o amava, nem sequer passava pela cabeça dela a ideia de fazê-lo assumir a criança ou coisa assim. Não precisava, ela seria capaz de criá-la sozinha. Só ela e seu filho.

Interrompendo seus pensamentos, o telefone toca na sala. Bianca desperta de seus devaneios e vai atendê-lo. Toma um susto ao reconhecer a voz do outro lado: era André. Ele pedia para encontrarem-se novamente. Não num encontro, um almoço apenas, ele tinha de falar-lhe algo muito importante, dissera.

Bianca ficou confusa com aquele telefonema. Ele não tinha como saber de nada. Ela só ficou sabendo agora. E como ela reagiria vendo-o frente a frente. Era fácil manter a decisão de não contar nada a ele sem nunca mais vê-lo, mas agora? Foi trocar de roupa pensando no que fazer. Haviam marcado de encontrarem-se em uma hora e as dúvidas só aumentavam a cada instante.

Ao chegar no restaurante ela o viu perto de um apoio de madeira na parte de fora, perto de algumas mesas que haviam ao ar livre. Olhava para o tempo com um olhar distante e vazio. Ela sentiu um calafrio percorrer-lhe o pescoço. Tomando coragem aproximou-se e o cumprimentou.

Conversaram um pouco sobre assuntos banais e ela percebeu que ele parecia buscar coragem para falar algo. Então ela sentiu que devia lhe dizer. Não era correto esconder dele uma coisa dessas. Não pediria nada a ele e deixaria claro sua decisão de criar o filho sozinho, mas tinha de contar. Talvez ele ficasse até menos angustiado quando soubesse e percebesse que seja lá o que quisesse contar não poderia ser assim tão importante.

Cuidadosamente ela lhe deu a notícia. Falou de sua decisão, que ficara sabendo a poucas horas e que não cobraria nada dele. O olhar de André, primeiramente de surpresa se transformou em pânico e depois em tristeza ao perceber com quanto amor e certeza Bianca falava. Antes que ela terminasse ele lhe interrompeu abruptamente:

- Você não pode ter esse filho.

Bianca calou-se e ficou olhando-o atônita. Baixou o olhar para suas mãos, respirou fundo e respondeu:

- Essa não é uma decisão sua André. O filho é meu e eu decidi criá-lo.

André olha para ela penalizado, pega suas mãos e fala carinhosamente olhando em seus olhos:

- Me desculpe Bianca, mas você não pode mesmo ter esse filho. Se fosse em qualquer outra situação eu não iria me opor, se você decidisse isso que ficasse com ele. Mas agora é diferente.

Bianca soltou suas mãos decidida a se levantar da mesa e ir embora de uma vez por todas. Estava ficando muito assutada com o rumo daquela conversa e já se arrependia totalmente de ter dito a ele com medo de que ele fizesse qualquer coisa que a impedisse de seguir adiante.

- Diferente como André? Não interessa o que você pensa, eu vou ter esse bebê. E não há nada que você possa fazer que vai impedir isso. Adeus e por favor não me procure nunca mais.

Levantando-se, Bianca sai com lágrimas nos olhos. Não importava o que ele pensava, ele não importava. O filho era dela, só dela.

Antes de chegar a rua ela é alcançada por André que a vira e fala bruscamente:

- Você não pode ter essa criança Bianca. Eu tenho AIDS. Descobri essa semana, mas já tinha a tempo suficiente de ter passado para você.

* * *

Um ano depois da conversa no restaurante Bianca olha para sua linda princesinha dormindo tranquilamente no berço, acomodada confortavelmente no quarto preparado e decorado com princesas e fadinhas em todos os tons do arco-íris. Ela tinha 5 meses e seus olhinhos brilhavam toda vez que viam a mãe.

Vários especialistas sempre afirmaram que a amamentação era essencial para a formação de um vínculo forte entre mãe e filho. Porém mesmo impossibilitada de amamentar seu bebê, Bianca sentia que a ligação entre elas não poderia ser mais forte. Somente ao ouvir a voz da mãe, a pequena Camila sorria abertamente e agitava-se toda.

Bianca sentia um aperto no peito sabendo que sua licença maternidade estava acabando e teria de deixá-la aos cuidados de sua mãe na maior parte do dia. Camila era seu pequeno tesouro, seu pedaço do paraíso.

Bianca tinha AIDS também. Ela realmente havia sido infectada na mesma noite em que Camila foi concebida. Seus sentimentos eram cada vez mais confusos sempre que pensava em tudo o que tinha acontecido. Ela queria odiar André pelo que ele tinha feito, mas ela sabia que a culpa também era dela. E por outro lado queria agradecê-lo por ter tornado possível a vida de Camila.

Depois do diagnóstico, as coisas tinham se complicado bastante. Bianca ficou sem rumo. Achou que sua vida tinha acabado justo no momento em que ela iria realizar seu maior sonho. Começou a pensar então no aborto, pois não queria destinar a criança a um sofrimento de uma doença tão cruel e incurável.

Suas amigas a acharam no apartamento magra, sozinha e apática, semanas depois, sem querer saber do mundo e apenas pedindo um pouco mais de coragem para acabar com a própria vida uma vez que não tinha tido coragem suficiente de abortar. Ouviram entre lágrimas Bianca falar de tudo o que aconteceu, mas Márcia, que era médica, a mostrou que nem tudo estava perdido. Ela a abraçou forte e esclareceu tudo o que sabia sobre a doença.

A ignorância sobre a AIDS, embora todos saibam como preveni-la torna difícil a vida daqueles que são portadores do vírus. Porém o fato de ter sido contaminada não significa que você ficará doente imediatamente. Pessoas soropositivas podem viver muitos anos e nunca apresentarem sintomas, apesar de passarem a doenças a outras pessoas mesmo assim. Essa é uma doença que hoje não tem cura, mas as pesquisas avançam a cada dia e o tratamento da doença existe, é gratuito e deve ser feito.

Essas palavras deram um pouco mais de esperança a Bianca, mas o que realmente lhe deu forças para se reerguer foi saber que nem sempre a mãe passa a doença para o filho e que existe meios para que a criança não fique infectada. Ela teria de ser sempre acompanhada, o parto não poderia ser normal nem ela poderia nunca amamentar o bebê. Mas haviam chances. Tanto que o aborto nem era permitido legalmente nesses casos.

Então Bianca, mesmo sabendo que teria sua saúde para sempre debilitada, que corria o risco de não ver seu bebê crescer até a idade adulta, que não teria uma vida normal, ela decidiu que valia a pena e continuar a viver.

Hoje como tantas pessoas no Brasil e no mundo Bianca segue com sua vida da maneira mais normal possível para uma mãe solteira, mas recebe ajuda inestimável de sua mãe e amigas. Trabalha ainda na mesma empresa, depois de uma franca e esclarecedora conversa com seu chefe acompanhada de Márcia. Toma os remédios necessários todos os dias, mas não considera isso um fardo e sim a lembrança diária que a mantém viva e saudável.

As coisas nem sempre são fáceis, ainda mais num mundo ainda preconceituoso por pessoas que, assim como ela um dia fora, desconhecem a doença e suas características e não sabem que ela não é contagiosa num contato de mão, num abraço, ou sentando-se na mesma cadeira. Quando alguma dúvida surge, num momento mais difícil, ela olha para Camila e se pergunta se realmente vale a pena. E então a vê sorrir, ou mexer seus pequeninos bracinhos e ela sente que vale a pena sim.

Toda manhã quando acorda com o chorinho exigente e faminto de Camila, ela agradece a Deus por lhe conceder mais um dia. E sabe que tudo o que aconteceu serviu para fazê-la valorizar o que realmente importa, numa vida que podemos perder a qualquer instante. Mesmo alguém que não tenha AIDS.

E sabe que assim como a filha que começa no mundo, ela também está iniciando uma nova vida, que talvez possa não ser longa, mas que ela decidiu que seria feliz e completa em cada valioso dia que ainda lhe restar.

A caminho do horizonte


Marina passeava pelo praia sem notar os turistas e visitantes que enchiam o local. Seu olhar a levava para bem longe, além das ondas do mar, bem além da linha onde este encontrava-se com a vastidão do céu, que no momento encontrava-se quase inteiramente azul. Ela fitava o espaço acima da paisagem e seus olhos traíam uma súplica e tristeza que castigavam seu coração.

A algumas horas ela conversava através da internet com Marcos, seu namorado. Eles haviam se conhecido quando ele veio a férias visitar amigos no Ceará. Aqui chegando foi à praia onde Marina o viu pela primeira vez. Ela lembra como se fosse agora o momento em que seus olhos se encontraram e ele lhe sorriu daquele jeito tão meigo e tão dela. Agora, pensando bem, ela percebia que foi naquele momento que ela se apaixonou por ele, mesmo que eles só viessem a falar-se um pouco mais tarde e o primeiro beijo dos dois só tenha acontecido dois dias depois num lual organizado pelos amigos.

Agora com um sorriso lhe brincando nos lábios ela lembrava de tantos momentos juntos que tiveram. Depois daquele lual, passaram o resto das férias juntos, e ela o levou para conhecer todos seus lugares preferidos naquela cidade em que morava desde o dia em que nasceu e que conhecia como a palma da mão. Alguns dos lugares, ele já conhecia de outras férias, outros era impossível de saber. Ainda mais tendo a importância com que ela lhes apresentava. Como a rocha solitária de uma praia abandonada em que ela chorara por todo um dia ao saber da separação dos pais.

Conheciam-se a poucos dias, mas ela sentia que podia confiar-lhe a vida toda, ou melhor, ela sentia como se fosse se arrepender enormemente se não aproveitasse cada segundo ao seu lado. Seria algum tipo de premonição?

Os dias foram passando e Marina sentia-se com nunca imaginou ser possível, ora queria pular de emoção, com uma felicidade tão imensa e pura transbordando de todos seus sentidos, ora sentia vontade de encolher-se numa tristeza antecipada por saber que ao final do mês teriam de se separar. Nesses momentos ela parava e se perguntava com poderia conseguir viver mais um dia distante dele. Antes era possível, mas apenas porque ainda não tinha consciência de sua existência nem daqueles sentimentos tão arrebatadores que agora lhe dominavam a alma.

Toda manhã ao acordar sentia ao mesmo tempo alegria pela noite que findara dando início a um outro dia em que ficariam juntos, e também uma certa melancolia, pois era um dia a menos no mês mais maravilhoso de sua vida. Ela já havia desistido de fazer suas amigas entenderem o que sentia, e nem falava do assunto com sua mãe, que havia até chegado a repreendê-la por estar “levando a sério demais” esse relacionamento. Ora se ela sentia como se estivesse esperado a vida toda apenas para conhecê-lo, como não poderia levar a sério?

Tudo nele parecia perfeito, até suas falhas, apresentadas quando tinham pequenas discussões. Um príncipe feito sob medida para mim, pensava ela. Uma noite ele a surpreendera quando a confessou baixinho no ouvido, no meio de uma festa com os amigos, que a amava e que nunca havia se sentido assim antes. Então como se tivesse dito a mais simples de todas as coisas, a beijou na bochecha e ofereceu-se para pegar mais um refrigerante.

Um dia então as férias chegaram ao fim, e Marina surpreendeu-se ao ver que a dor que sentia não era tão grande quanto imaginara, talvez porque na noite passada ele havia lhe dito, antes de deixá-la em casa:

- Marina, eu sei que nos conhecemos a pouco tempo, mas sinto como se tivesse sempre sido seu e tivesse apenas chegado finalmente o momento de nos encontrar-mos. Você é a menina-mulher mais incrível que eu já conheci, e sei que embora distantes, nós nunca mais ficaremos separados.

Naquela noite ela foi dormir com a certeza de que não importava se ele estivesse em outro estado, aquela história, o seu conto de fadas, não iria terminar ali, nem em momento algum.

Então aconteceu. Numa noite, aparentemente comum, quando conversavam na internet, tiveram um desentendimento. Marina havia tido um dia difícil, sua mãe estava extremamente magoada e desiludida com o amor, como era tão comum desde o dia em que seu pai foi embora. Naquela manhã, Marina estava triste pois não conversavam a três dias e sua mãe então começou a lhe falar coisas. Coisas que lhe entraram na cabeça, mas não deveriam. Ela lhe falou que deixasse essa história de lado, que fosse conhecer novos garotos, que era muito nova e que era LÓGICO que a essas alturas Marcos já devia estar saindo com outras meninas.

Marina não queria acreditar, mas via ao seu redor, vários exemplos de amigos e amigas que namoravam e terminavam e traíam, e uma dúvida traiçoeira ia se instalando. “Ora, porque ia dar certo comigo se eu não conheço ninguém que tenha conseguido levar um relacionamento sério adiante? Por que o meu daria certo? Ainda mais estando tão longe. Será que amor verdadeiro e duradouro realmente existe mesmo?”

O dia passou e ela sentia-se cada vez pior, até que chegou a noite e quando estava arrumando-se no quarto viu o chamado de Marcos piscando no monitor. Injustamente já começou a conversa com raiva dele, como se tivesse feito alguma coisa de errada. Ele pediu desculpas pela demora, explicou-lhe o motivo, mas o sentimento ruim já havia se instalado. Dali a pouco já estavam brigando e as características dele, que antes lhe pareciam engraçadas, começaram a ser citadas como defeitos.

Os atrasos em compromissos e encontros, a mania de corrigir-lhe, que antes ela achava tão bonitinha, os mau-humores quando seu time perdia. Tudo ela agora lhe jogava na cara, e ele acuado inicialmente defendia-se e passado algumas tentativas em vão começou a irritar-se também. Tiveram sua primeira grande briga, que terminou com ela, arrancando o fio do computador da tomada e jogando-se na cama onde chorou por um bom tempo até dormir.

No dia seguinte, mais calma, ela pensou o tempo todo na discussão boba que tiveram. Quis ligar o computador ainda pela manhã, para lhe mandar uma mensagem pedindo desculpas, mas tinha acordado atrasada aquela quinta e tinha de ir ao colégio. Vestiu a roupa e foi, mas não se concentrou nem um pouco na aulas, pensando e criando maneiras de lhe escrever ou mandar algo diferente e que demonstrasse a ele o quanto estava arrependida.

Ao chegar correu ao computador com a idéia já pronta na cabeça, abriu a caixa de e-mails, mas foi surpreendida por uma mensagem dele, que havia sido escrita quinze minutos depois da discussão, em que ele dizia estar vindo ao Ceará para visitá-la. Explicava que a visita já estava marcada devido a um feriado em seu estado e que ele queria fazer uma surpresa, mas que iria antecipar a partida, saindo no primeiro ônibus aquela manhã.

Marina, lentamente senta-se na beira da praia e observa as ondas que chegam até seus pés. Enquanto desenha pequenos rabiscos na areia, ela lembra da emoção que sentiu ao ler a mensagem a poucas horas. Correu a trocar de roupa enquanto fazia as contas mentalmente para calcular o momento em que ele chegaria. Entrou em um site de transportes e viu que o primeiro ônibus de Maranhão com destino ao Ceará havia partido às 06:00hs, contando oito horas de viagem ele deveria chegar por volta das 02:00hs da tarde. Nem se deu ao trabalho de desligar o computador quando viu o relógio marcando uma e quinze. Disparou quarto a fora e passou voando pela mãe na cozinha avisando que iria sair e voltava logo, mesmo sabendo que era mentira.

Seu único pensamento era no que diria a ele quando o visse, estava em dúvidas se apenas pulava em seus braços, ou se ajoelharia e lhe imploraria pelo perdão. Estava tão absorta que não ouviu quando a mãe respondeu, mas ao passar na sala, viu uma imagem na televisão, ligada sozinha, que lhe chamou a atenção. Seus pés grudaram no tapete, enquanto ela via as imagens de um ônibus na estrada e lia a legenda logo abaixo.

ASSALTO A ÔNIBUS NA BR 020 RESULTA NA MORTE DE PASSAGEIRO.

Marina então começa a ouvir a reportagem. Um repórter loiro, com um ar penalizado, repassava as últimas notícias.

- O ônibus que vinha do Maranhão estava chegando ao seu destino depois de quase oito horas de viagem, quando três assaltantes o fizeram parar. De acordo com relatos de testemunhas um dos bandidos parecia muito nervoso e ao sair atirou acidentalmente num rapaz que tentava ajudar uma senhora que passava mal. O rapaz foi atingido no peito e morreu a caminho do hospital. Ele ainda não foi identificado. A descrição mostram-no como um jovem de idade entre 20 e 25 anos, magro e loiro. Também foi descrito com alguém muito educado e cortês com todos os outros passageiros. Sua bagagem ainda não foi identificada, mas existem essas duas malas que não é de nenhum outro passageiro, levando a conclusão de que era dele. A polícia pede que algum familiar ou conhecido entre em contato com eles no número que aparece abaixo.

O coração de Marina doía, mas ela ainda alimentava ferozmente por esperanças de que ele não estivesse no ônibus até ver a imagem das mochilas. Uma delas era verde e preta, e de um lado havia um pedaço de tecido vermelho que ela reconheceu instantaneamente. Era um lenço que ela lhe presenteara, no dia de sua viagem, amarrando-o em uma das alças.

Era a mochila dele.

Marcos estava no ônibus, ele tinha vindo para vê-la. E agora...

Segurando as ondas nas mãos, Marina mais uma vez olha para o céu límpido e quente aquela tarde. Então seu olhar focaliza a vastidão do oceano e uma voz lhe pergunta baixinho: Por que não? Levantando-se lentamente ela entra devagar no mar sentindo a água morna tocar em sua pele lhe trazendo um certo alívio, lhe dando vontade de entrar mais e mais. Até a linha onde ele se encontra com o céu talvez, a caminho do horizonte. Talvez ela pudesse encontrá-lo lá. E então num delírio ouve uma voz, tão conhecida lhe chamando:

- Marina! - grita a voz masculina.

Ah, como ela queria que aquela voz não fosse apenas uma ilusão. Como ela queria ouví-la uma vez mais. E ouve:

- Marina, espera... Você sabe que não sabe nadar.

É ela não sabe, mas que importa isso?

Então a voz da ilusão some e ela sente uma mão lhe puxando. Vira-se para reclamar com o intruso quando vê os olhos mais doces do mundo a lhe fitarem.

- O que você ia fazer sua garota boba?

- Marcos...

- Claro, quem você pensava que era? - ele respondeu lhe dando o seu sorriso. - Você não recebeu meu e-mail?

Então Marina sem acreditar no que via pergunta apenas:

- Mas sua mochila...

- Minha mochila? Ah, é que eu ia vir no primeiro ônibus e acabei me atrasando, mas já tinha deixado minha bolsa nele... Depois tenho de ir atrás dela. Quando eu cheguei, só queria saber de ver você. Sua mãe disse que você tinha saído, não sabia pra onde. Ainda bem que eu te achei... Mas como você sabe da mochila?

- Então você se atrasou?

- Ah, você mesma me disse ontem que eu sou incapaz de chegar no horário em qualquer compromisso... Espero que até o dia do nosso casamento eu já tenha aprendido, não é?

E antes de lhe dar tempo de responder lhe beija os lábios, erguendo-a em seguida nos braços e rodopiando com ela até caírem ambos na areia da praia, sendo alcançados por uma onda que os cobrem como se quisesse se juntar a eles.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Névoa

Iraque, 1990, operação: Tempestade no Deserto, 23h22min
 
- Senhores, os helicópteros apaches atacarão aqui, os tanques virão por aqui e nós entraremos por aqui. No meio do fogo cruzado. – Aponta um coronel de bigodes grisalho no meio de alguns soldados americanos.
 
Eles estavam no centro de uma grande sala de reuniões, na cidade do Kuwait. O general do exercito americano Sederick Pack e em sua volta soldados de um grupo especial escutam atentamente as instruções por ele passadas. Eles eram dos marines, considerados os soldados mais agressivos em combate. Capazes de entrar em qualquer tipo de ação para realizar missões que por muitos são consideradas suicidas, eles estão lá prontos para tudo. Nessa noite a eficácia e infalibilidade desses bravos homens seria novamente testadas, pois todos contavam com isso para que fosse concluído cirurgicamente a missão para o qual foram designados: Eliminar Sadam Hussem. Tudo estava sendo planejado para o maior golpe de democracia que as nações do Oriente Médio que ali se situavam poderiam querer.
 
Há zero e vinte minutos, os soldados já se movimentavam na busca para realizar a missão. A noite seguia na escuridão que avançava sobre tudo e todos. Enquanto tentavam ser invisíveis e mudos, ao longe eram avistados muitos bombardeios que ocorrem contra as cidades mais a frente, ao norte. O pelotão A, como eram chamados já estava bem próximo do alvo e cada soldado prontos para entrar. A cidade de Ticriti, era o problema que tinha que ser enfrentado, de acordo com informações de um contato interno do governo, era onde o alvo se encontrava.
 
Eles avançam lentamente. Dois pelotões de 10 homens cada, que sabem que não podem separar-se de maneira alguma. Farrell, um jovem soldado de apenas 22 anos está ali, com sua metralhadora empunhada e óculos de visão noturna, seguindo vencendo a noite, avançando a minúsculos e calculados passos. Como em todo filme que tem aquela mensagem de apelo, as lembranças do jovem soldado começavam a encher sua mente. Ele via sua mãe Anita, seu pai Jorge, dando alguns conselhos e sua irmã Clara chegando das baladas. Como era boa sua vida, como era boa a vida em New York, apesar da correria infernal, do trânsito caótico e das milhares de pessoas cometendo os mais diversos tipos de devaneios, ali era seu lar e era uma cidade maravilhosa agora via. Aquela multidão rodando sem rumo na Times Square, comprando desenfreadamente, apaixonados, briguentos, mas eles na verdade estavam apenas sendo pessoas livres. Farrell queria se livrar das imagens mais não conseguia.
 
Como em um passe de mágica a vida de Farrell retorna há alguns meses atrás e ele simplesmente esquece que estava no centro de uma guerra e de uma missão que não podia haver falhas. Na sua visão ele estava parado em uma das muitas calçadas nova-iorquinas, próximo a uma poça d’água que refletia seu rosto. Aquela era uma lembrança das muitas madrugadas que ele passava nas ruas sem se nem mesmo avisar aos pobres pais. Ele observa aquilo tudo parecendo que estava de frente para grande tela de cinema, mas o filme era de sua vida. Será que aquilo era o medo? Farrell com certeza não sabia explicar, mas tudo já estava ficando mais que estranho e ele tentava entender isso. Em um estalo de sanidade o jovem soldado entende que estava em outro país, o meio de uma guerra e que seus pais e sua irmã estavam sofrendo muito por sua decisão de alistamento e ida para o Iraque.
 
E o que estava confuso volta a regra da realidade. Farrell se ver caminhando logo atrás do soldado de corpo avantajado, um homem branco que de tão forte, mal dava pra ver seu pescoço e infelizmente se ver no meio de ruas estreitas silenciosas e o pior de tudo perigosas. Inesperadamente um vento gélido surge do nada e junto com ele um medo forte e profundo rasgando a derme de todos. O ar frio bate nos ossos do rosto de Farrell levando ele para os lados e deixando os binóculos a segas. Quando se está com medo, apavorado e sem saber o que fazer nem onde se estar propriamente, nada parece ser comum e só se espera o pior. Os tiros explodindo próximos ao grupo soam para dizer isso.
 
Farrell joga-se no chão, se deparando com uma névoa espessa tomando todo o lugar. Mas como é possível uma névoa no deserto? Pensou Farrel, já certo de que tudo naquela noite era possível. Nada mais importava para ele nem para ninguém, ele tinha apenas que lutar e somente lutar agora. Quando se está no meio do deserto com um calor de cinquenta graus queimando o crânio e secando a pele tudo que se espera é ter um gole de água para beber. Mas quando se está a noite no deserto, no meio de uma guerra, tudo que se quer é um grupo de soldados aliados por perto. Coisa que agora Farrell não tinha. Onde estava o resto da equipe? Os olhos de Farrel varrendo todos os lugares possíveis, seu coração dispara o fazendo lembrar do treinamento duro que teve meses antes: “Nunca fique só, e se ficar não se deixe ser pego. Caso tenha a possibilidade real de ser pego, tire a própria vida”.
 
Os tiros vinham de todas as partes. O novato Farrel só avistava as luzes raivosas das balas, vindo em sua direção. Luzes que ele via verdes por causa dos óculos de visão noturna que usava. Tirar a própria vida não passava nem por um instante na cabeça de Farrell, então a única coisa que restava era lutar. Essa era a hora de revidar cada uma daquelas balas.
 
Inúmeros tiros são disparados e nos ouvidos de Farrel chegavam junto com os zunidos das balas, gritos que para ele eram de soldados mortos, porém não dava para distinguir quem eram se aliados ou inimigos. Os sentimentos que o tomava eram os mais diferentes possíveis: ódio, medo, desespero, dor, perda, eram muitos. Farrell estava só e cada vez mais perdido.
 
Em uma guerra nunca se luta só.
 
Ali no mesmo deserto onde o jovem soldado americano estava, há cem metros dele, um outro jovem, esse iraquiano sentia as mesmas sensações que Farrell.
 
Abdul, 19 anos, nascido em Kirkuk, filho de Hassam Saleh e Kader Attia, era um filho admirável, um aluno exemplar, um garoto até então normal. Foi servir no exército Iraquiano por obrigação. Ou ele iria ou seu velho pai de sessenta e cinco anos. Como a única coisa que ele mais amava era o pai, pois sua mão já era morta, ele estava servindo. Longe de sua cidade natal, tentava defender Ticriti, infelizmente para ele, nunca teve um treinamento adequando para uma guerra daquela magnitude e com um inimigo daquela magnitude. Foram apenas três meses de treinamentos se é que alguém podia chamar aquilo disso, armas falhando de tão velhas. Abdul estava tão perdido quanto Farrell e as únicas coisas que os diferenciavam eram seus uniformes e os lados por qual lutavam.
 
Noite anterior ao início da operação Tempestade no Deserto.
 
- Vocês precisam defender nossa soberania dos ataques desses infiéis – gritava Omar Zebari, o chefe de uma tropa de mais de duzentas crianças – Vamos eliminar todos, eles têm que morrer por Alá.
 
Abdul de verdade não entendia a guerra, nem queria entender, mas nos quatro meses que passou em treinamento viu diversos vídeos com inúmeras coisas erradas praticadas pelos Estados Unidos. Prisões e mais prisões de pessoas que não tinham nada a ver com terrorismo, assassinatos, espancamentos, mortes, destruição de casas e de cidades. Era puro terror, mas terror deles, dos infiéis, Abdul não via ali, outra saída para seu povo a não ser lutar. E assim, quem eram os terroristas? Perguntava-se Abdul.
 
A visão do jovem soldado iraquiano ainda não tinha sido tomada pela névoa densa, até então, pois agora, o bafo da morte envolvia seu corpo e no meio daquela névoa ele se via só, sem seu pelotão e tendo somente sua arma velha para proteger sua vida.
 
Sua voz se perde no meio daquela mistura de medo e desespero. Abdul começa a disparar inquietamente para todos os lados sem ter um alvo definido, sem saber nem mesmo porque atirava. Abdul só sabia que tinha que fazer aquilo, pois agora era por sua vida.
 
Farrell estava suado, olhos arregalados, corpo deitado na terra santa do deserto, tendo como proteção apenas aquele ato da natureza estranho, a nevoa. Ele não entendia por que deixara para trás sua família... Até entendia, mas não queria. Seriam seus inimigos mesmo terroristas desumanos? Ou apenas nossos líderes não queriam achar meios de entendê-los? E por isso, por desejos de alguém ele poderia perder a vida? Sua mente volta para três anos atrás quando ainda não era soldado. Ele lembrava de notícias de homens do Oriente Médio sendo capturados nos Estados Unidos, em bairros de comunidades mulçumanas. Mas será que todos que estavam ali eram desalmados e terroristas? O diálogo parecia ter acabado há muito tempo entre os homens daquelas nações. Mas quantas vidas tiradas eram necessárias para acabar com tal arrogância. Farrell não entendia e muitos menos seu governantes.
 
Abdul também fora tomado pelo passado que entrava lentamente em sua cabeça. Ele era bem pequenino e as brincadeiras com um garoto maior que ele o trazia alegrias. O menino das lembranças era americano, filho de um iraquiano que há muito anos morava nos Estados Unidos. Entre eles não havia diferença de raça, cor, religião, eles só queriam brincar e eram felizes correndo no terreiro de sua velha casa tendo sua mãe ainda viva e o observando. Enquanto as balas cortavam o ar sobre sua cabeça, Abdul realmente não entendia porque tal luta e porque da falta de paz.
 
- Peguei você! Eu disse que era melhor. Eu te falei, não falei?...Eu te falei... – gritava o garoto loiro de olhos azuis.
 
Farrell tem 13 anos, ele salta de alegria no sofá da casa do amigo por ter vencido uma fase de um game de estratégia de guerra. Seu adversário era Abdul, seu melhor amigo que tinha 15 anos, filho de Mohamed, professor na escola de línguas. Moravam no estado americano de Ohaio.
 
- Grande coisa Farrel, na fase anterior quem venceu hein? Quem venceu? – diz Abdul com o controle na mão mostrando certa chateação e alegria. Coisas de amigos.
 
Soltando o controle do game, Abdul corre até a geladeira de sua casa, pega um sorvete de palito e oferece outro para o colega metido a esperto.
 
- Por você ter tirado onda, vou deixar o de morando pra você Farrell e aí, agora quem é o vencedor.
 
Farrell rir. Sorvete de morando era o sabor que ele mais gostava. Abdul é o membro mais inteligente de um clube de escoteiros dirigido por Samuel, pai de Farrel o qual sempre teve muito carinho por Abdul.
 
- Ei meu pai não vai te dar a medalha heim moleque – diz Farrell sorrindo.
 
O dia estava perfeito em Ohaio. Um céu com um esplêndido azul, poucas nuvens e as que por ali passam eram como algodão. Ali não existe névoa, nem cegueira.
 
- Sabe Samuel, seu filho é muito inteligente, um garoto exemplar, interessado e concentrado. Tenho orgulho dele ser o melhor amigo de Abdul.
 
- Eu digo o mesmo amigo, adoro seu filho também e acho muito bom os dois serem amigos. Assim como nós sempre fomos desde que tínhamos a idade deles.
 
Os risos tomam os quatro cantos do bairro, dois homens felizes, com seus filhos também felizes. Do outro lado da rua, duas mulheres desciam de um carro trazendo sacolas de supermercado, elas riem desconsertadamente.
 
- Olha os dois, continuam no mesmo lugar.
 
- É, se deixarmos, eles passam o dia inteiro ali, só contando suas proezas e histórias de pescador.

Doce Dezembro




Karen cambaleia pelas ruas escuras da cidade. Na verdade, não muito escuras. A lua cheia brilha no céu que está absolutamente livre de nuvens, permitindo a visão de mais de um milhão de estrelas. As casas e algumas árvores encontram-se iluminadas com mil luzinhas que piscam loucamente em diversos tons. As pessoas reunidas nas casas comemoram uma data popular e tradicional, mas ela passa sem nem enxergar o movimento e os sons.

Tudo parece deixá-la ainda mais entorpecida. Andando a esmo, sem saber para onde ir, de repente lhe dá uma vontade louca de beber. Mas ela não tinha esse hábito então não conhecia bem onde havia bares, embora morasse na cidade já há muito tempo. Desde o ano do casamento na verdade, e essa lembrança lhe aumenta a urgência de encontrar qualquer lugar com licença para comercializar álcool.

Vê uma porta aberta de onde sai um cheiro inconfundível de bebida e cigarros. Havia encontrado um bar enfim. Entra e vai direto ao balcão. Ao erguer os olhos se depara com uma garçonete ruiva com as pontas dos cabelos pintados de preto a fitá-la. Olhando para trás da garçonete vê uma variedade enorme de bebidas bem maior do que julgava existir.

- E aí querida, o que vai querer hoje?

Diante da indagação ela percebe que não tem a mínima noção de bebidas. Então numa voz que soou mais triste do que gostaria pede:

- Qualquer coisa capaz de me fazer esquecer bem rápido.

- Bem, pra isso meu anjo, eu preciso saber o que você quer esquecer.

Olhando e dessa vez reparando na garçonete, percebe pela primeira vez os olhos negros pintados de um preto ainda mais profundo. A boca pequena pintada num tom quase vermelho moldava um sorriso que de alguma maneira a reconfortou. Olhando mais ela viu que a garota vestia uma roupa que mais parecia uma fantasia, com uma saia curta quadriculada e um colete vermelho.

Dando uma olhada ao redor, percebeu as músicas agitadas e alguns casais que apresentavam alguma coisa diferente. Olhando para ela de novo deu-se conta de onde estava.

- Ah meu Deus, estou num bar gay.

- Algum problema nisso? – perguntou a garçonete, num tom ligeiramente mais duro.

- Ah não, nenhum – respondeu querendo sorrir pela primeira vez na noite – aqui pelo menos tenho certeza que não vou ter de me preocupar com nenhum canalha mentiroso.

- Então você quer esquecer um canalha que mentiu pra você, é isso?

Karen apenas balança a cabeça levemente.

- Certo, acho que sei de algo bom para você. E pode ficar tranqüila. Nós daqui não temos preconceito por você ter preferências sexuais diferentes das nossas. – fala num risinho irônico.

Colocando uma bebida transparente num pequeno copo redondo, ela indaga:

- E aí, qual foi o problema, ele era casado?

Karen hesita um pouco olhando para a bebida em suas mãos e para a linda garota a sua frente que parece realmente interessada na sua história, embora ela saiba que no fim das contas ela só quer mesmo uma boa gorjeta. Então com um murmúrio de “Dane-se” nos lábios, ela começa a falar:

- É ele é casado sim. Comigo. Mas há meia hora estava com uma vadia num quarto de hotel vagabundo.

- Hum, isso não parece bom.

- É não é. Ainda mais por que ela é a vagabunda que não conseguiu a promoção que eu ganhei essa semana. E para se vingar o usou. Mandou uma mensagem de foto com um endereço.

Depois de beber todo o conteúdo do copo de uma vez, ela para enquanto sente o líquido descer queimando. Naquele momento ela bem queria que fosse fogo de verdade. Ah, ela queria morrer sim. Só pra não ter de sentir o que tava sentindo.

- É forte isso...

- Bom, pra alguém que quer esquecer, esse é um dos melhores. Embora no fundo todo mundo saiba que amanhã a lembrança estará ainda pior com a ressaca.

- É, bem talvez. Mas que se dane. Seja lá o que fosse não daria para esquecer mesmo.

Passando o dedo em círculos pelas bordas do copo, ela lembra quantas vezes leu passagens de livros que descreviam personagens fazendo exatamente isso. “Passeando os dedos pelas bordas do copo”. Será que era assim que os personagens se sentiam. Pensa, mas não fala. Ao invés disso, fala mansamente para a garçonete, como se falasse a si mesma.

- Nada me faria esquecer de verdade. O que nesse mundo poderia tirar algo que está assim tão forte na minha alma que se eu tentasse arrancar não seria nem como se eu tirasse uma parte de mim, mas como se eu me fosse toda? O que me faria esquecer a pessoa que está presente em absolutamente todas as lembranças importantes que eu tenho algum registro na memória. A única pessoa que eu amei que eu aprendi o que é amar. A pessoa a quem doei todos os segundos de cada um dos 5 anos que vivemos juntos.

A garçonete apenas a olha, sem falar nada, deixando que ela ponha tudo para fora. Por que ela precisa, e é uma das poucas oportunidades que terá de fazer assim sem ter de medir as palavras. E por que ela parece irresistivelmente linda naquele tom melancólico e doce.

- Ele disse que pensou que eu o tivesse traído. Como se fosse possível eu querer, ou sequer notar outro homem no mundo se não ele. Disse que ela tinha falado isso, e depois o levado até o cara que confirmou a história. Aquela piranha armou tudo direitinho. Eficiente e diabólica como ela é. E ele, cego de ciúmes e orgulhoso como só ele sabe ser, ficou louco e fez o que ela queria.

Com um sorriso triste, ela se despede da garçonete depois de virar o quarto copo, vai até uma pista de dança, repleta de pessoas felizes que dançavam loucamente. Também não gostava muito de dançar, mas naquela noite não faria mais diferença.

Depois de se sentir absolutamente tonta, sente uma mão lhe puxando pela cintura e a virando de frente. Era a garçonete que aproveita a levada mais lenta para dançar em dupla. Ela apoiou a cabeça em seu ombro e falou baixinho:

- Você sabe que vai perdoá-lo não é? Que ele lhe fará eternas promessas lhe dirá que a ama mais que tudo e que não consegue viver sem você. E você vai perdoá-lo. Por que é tudo verdade, por que ele só cometeu um erro, é inocente e por te amar tanto, tentará nunca mais machucá-la de novo, embora ainda vá dar alguns deslizes vez ou outra. Mas amanhã você irá perdoá-lo. Você sabe não é?

Embalada pelo doce cheiro dos cabelos coloridos da garçonete, Karen apenas balança a cabeça concordando. E levando as mãos pela cintura dela, sente uma vontade absurda de...

- Não, o que eu tô fazendo?...

- Mas calma agora anjinha, nesse momento, você está magoada, bêbada e não vai ter a menor idéia que esteve aqui, quando acordar amanhã de manhã.

E afastando levemente seus cabelos do rosto, a garçonete segura a cabeça de Karen a aproxima da sua e toca os lábios dela com os seus, a princípio levemente, para então aprofundar o beijo num rompante louco e delicioso.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Duas Vidas


O mundo em que vivo é bem diferente do seu. Passo horas, dias, meses... Anos sentado em uma bela poltrona macia de couro, atrás de uma mesa de madeira real e grandes portas de vidro e aço. Fico no alto de um grande prédio que mais parece um palácio que onde vejo o mundo de uma forma diferente. Na verdade vivo de uma forma bem diferente de você. Mas eu estou aqui... E você?!

Você está em uma bela mesa. Sentado na cabeceira. Você é o centro de tudo. Na outra ponta uma linda mulher. Loira, 1,70m de altura, 58 quilos, com olhos verdes como o mar. As mãos dela sempre lhe impressionaram. Macias e leves. Sempre que passeiam em seu corpo lhe levam ao êxtase. Mas você não as admira apenas na hora do sexo. Agora, por exemplo, ela segura uma colher e a enche de arroz branco, quente e cheiroso. Como um ritual belo ela leva um pouco do belo jantar até o prato de uma linda menina, que agora briga com o irmão mais velho de dezesseis anos.

A família perfeita.

Nossos mundos.

As vinte e três e trinta é quase como um ritual. Entro no elevador, aperto no botão do térreo e logo chego a um lugar vazio e silencioso. Olho para a vaga 1A e vejo o sonho de milhares de pessoas pelo mundo. A máquina. O motor mais potente capaz de movimentar um objeto no chão e ficar ainda tocando no asfalto. Objeto que não é uma aeronave, mas tem um valor superior a muitas. Algo que diversas pessoas seriam capazes de matar por ela. Bancos de couro, acabamentos cromados com madeira, provavelmente madeira de traficada da Amazônia, e também tecnologias inimagináveis.

Tudo para um homem só.

Você veria isso. Eu não. Eu vejo nada. Eu vejo tudo como simples capricho, um dinheiro fútil que gasto sem me importar. Mas agora, as vinte e três horas e trinta e nove minutos, é tudo o que tenho.

Uma cama grande, espaçosa, de madeira, boa o bastante para não desmontar enquanto você soa mesmo o ar estando ligado no máximo. As minhas mãos passam no volante. As suas passam em um corpo perfeito. Ela se enrosca em suas pernas e geme e sussurra em seus ouvidos. Isso é o que você escuta. Eu, o barulho de vários cavalos e engrenagens se movimentando ferozmente.

Você está feliz, eu estou só.

Maicol é um poderoso empresário do ramo jornalístico. Aos 35 anos é um magnata bem sucedido, herdeiro de uma tradicional família. As zero hora, Maicol pisa fundo no seu Lamborguine. Corta os faróis, deixa outros frágeis carros para trás, esses parecendo pintura abstratas em uma tela negra. Divorciado há três anos entrou em uma vida diferente. Uma vida onde tudo é possível e vale à pena. A não ser... Sentir qualquer tipo de emoção.

***

Prédio Nova Alvorada. Um prédio imenso. Trinta andares, acabamento perfeito, cores neutras e uma garagem de fácil acesso. Acesso esse que agora o imponente Lamborguine, prata com vidros fumês, entra.

Prédio residencial? Não. Isso é o que todos pensam. No interior um luxuoso espaço de espera. Uma sala enorme, o piso da entrada forma desenhos de vários labirintos. Grandes sofás negros, plantas espalhadas pelos cantos, luzes por toda parte. Cartões e mais cartões, que são chaves de acesso a todos os apartamentos, ficam dependurados na parte oposta a um grande quadro 5x5m, que retrata uma pintura de dois corpos sobrepostos um ao outro. Sinuoso não é?!

***

Do outro lado da cidade, em um pequeno apartamento, com a pia abarrotada de panelas, copos, talheres e louças, uma geladeira é aberta. Uma vasilha cheia de sorvete é pega em meio aos tantos iogurtes de morango e uma torta de abacaxi. Uma boca seca é molhada por uma colher cheia de sorvete. A mesma boca é tomada por um beijo firme, lento e zeloso. Sorrisos enchem o lugar. Sorrisos em baixo tom.

Tiago e Sandra, 30 e 26 anos, saem para a sala. Ela nas costas dele, prontos para passarem mais uma madrugada de sexta acordados. Apenas assistindo um bom filme na TV, falando do futuro dos filhos, mandando e-mails para os pais e para velhos amigos. Duas pessoas felizes, prontas para curtirem um fim-de-semana doméstico e afetuoso.

***

- Boa noite, querido. Trabalhou muito hoje?

Uma bela mulher usando apenas lingerie mínima e vermelha estava encostada em uma imponente porta de carvalho maciço. Uma porta grandiosa e de brilho único como os lábios daquela dama, que logo pega a pasta de Maicol.

- Que bom que você chegou amor...

Incrível um homem chegar quase de madrugada em casa e mesmo assim uma linda ruiva de corpo firme, rosto angelical e cabelos sedosos, o esperar na porta tão sexy quanto uma gripe.

Ela é uma prostituta de luxo, paga para fingir para caras como eu, que é uma esposa. Ela é igual a muitas que ficam nesse prédio, em muitas noites. Lindas, únicas e tão falsas quanto às palavras pronunciadas quando elas nos vêem chegar. “Amo-te”. Nesse prédio milionário, existem vários apartamentos e quase nenhum fica vazio.

O prédio é de um dos assíduos freqüentadores. Mais um dos perdidos dessa cidade. Nós pagamos muito para ter total privacidade, mas é claro que tudo aqui é pura pompa. Salas grandes, quartos requintados de luxo, móveis espetaculares, quase tudo com acabamento em ouro. E o que buscamos é o que temos: sexo, apenas sexo. Pago e por apenas alguns horas.

Diferente de você Tiago, cada orgasmo que as faço ter, cada grito, cada gota de suor que faço saltar dos corpos delas, é pago. Mas você. Você não. Qualquer coisa que faça ou doe a ela é tudo. Até mesmo sua cara de bravo, quando ela faz qualquer coisa que o incomode. E é claro quase tudo o incomoda. Porém quando você faz uma simples coisa que ela sonhou a vida toda, como trazer um café da manhã para ela na cama, ela te ama cada vez mais.

Apesar de agora, ainda de madrugada, vocês dois estarem juntando as contas, quebrando a cabeça para saber como vão pagá-las, vocês sabem que minutos depois tudo vai acabar em mais algumas cenas de puros sentimentos verdadeiros e todas as preocupações serão lavadas com a água quente que cai do chuveiro em seus corpos.

E eu?...

Eu estou nessa cama que considero até absurdo seu tamanho. Ela está deitada do meu lado totalmente em pêlos. Linda, perfeita. Mas nossa! Quantos homens já a tiveram? Posso imaginar. Depois de tudo não sinto nada por elas. Daqui a pouco vou sair e como na semana passada, algumas camareiras vão entrar nos apartamentos e deixar tudo limpo, brilhante e perfumado, para quando nos próximos fins de semana, eu e os outros voltarmos e viver esse delírio vazio.

***

- Bom dia meu amor.

- Oi minha esposa mais linda do mundo!

- Papai...!!!

- Opa! E os meus dois filhos mais lindos do mundo! É claro.

Sorrisos. Abraços apertados e quentes. Perfeição.

***

Sisudo. Solitário. Pensamentos perdidos. Muito dinheiro.

***

- Deus!

Janiel, 23 anos, filho único, acorda suado, assustado, na sua cama de 2m x 1,5m. Ele está em meio a um caos. Um quarto que poderia ser descrito em diversas maneiras, mas nunca como organizado. Roupas pelo chão, uma guitarra escorada na porta aberta do guarda-roupa de onde estão meio caídas uma calça e um casaco. Três tênis de diferentes modelos enroscados pelo chão, enquanto seus respectivos pares encontram-se em lugares diferentes espalhados debaixo da cama, perto da porta e até em cima de uma caixa de som, ao lado de um computador esquecido ligado a noite toda.

Ele senta-se na beira da cama, levando as mãos à cabeça um sorriso lhe salta a boca ainda machucada de uma briga na noite anterior.

- Nossa que sonho louco... Caralho! Eu em dois caras. Um feliz marido, um homem simples, com uma esposa linda e dois filhos mais ainda. E eu. O mesmo homem em outra vida. Rico, com várias mulheres, carros importados, empresas, porém triste e só.

Ainda com um sorrio ofuscando os dentes quase amarelos, vestido com uma camisa da seleção brasileira, completa:

- É claro que é só um sonho. Tenho que me levantar e trabalhar... Sonho doido.

Ali perto de Janiel, em cima de um pequeno e velho criado mudo, um bilhete de loteria comprado na tarde anterior, que valia um prêmio de 46 milhões a serem sorteados naquela noite. Do lado, em um guardanapo, o nome Samanta estava rabiscado junto a oito números, que ele havia ganhado de uma garota na noite anterior, um pouco antes de receber o soco que o cortara a boca, um soco do acompanhante da garota em que ele deu em cima.

Por cima dos dois papéis, uma carta de tarô, que ele achara na porta de casa quando chegou. Nela havia uma figura que ele nunca tinha visto, onde havia escrito abaixo: DESTINO.

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Blog criado para divulgar contos e crônicas, pautados nos mais diversos temas, escritos de uma forma mais direta e dinâmica. Sérgio e Crisla buscam assim acabar com o medo daqueles que não se aventuram em ler uma boa história por não quererem enfrentar páginas e mais páginas dos bons livros. Dar emoção em poucas linhas, prender a atenção com uma boa narrativa, são metas que os autores querem alcançar com o blog, onde amor, política, vampiros, agentes secretos e seres mágicos estarão sempre por aqui. Bem vindos ao nosso blog, aproveitem cada texto que criamos e muito obrigado por estarem aqui.