quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Névoa

Iraque, 1990, operação: Tempestade no Deserto, 23h22min
 
- Senhores, os helicópteros apaches atacarão aqui, os tanques virão por aqui e nós entraremos por aqui. No meio do fogo cruzado. – Aponta um coronel de bigodes grisalho no meio de alguns soldados americanos.
 
Eles estavam no centro de uma grande sala de reuniões, na cidade do Kuwait. O general do exercito americano Sederick Pack e em sua volta soldados de um grupo especial escutam atentamente as instruções por ele passadas. Eles eram dos marines, considerados os soldados mais agressivos em combate. Capazes de entrar em qualquer tipo de ação para realizar missões que por muitos são consideradas suicidas, eles estão lá prontos para tudo. Nessa noite a eficácia e infalibilidade desses bravos homens seria novamente testadas, pois todos contavam com isso para que fosse concluído cirurgicamente a missão para o qual foram designados: Eliminar Sadam Hussem. Tudo estava sendo planejado para o maior golpe de democracia que as nações do Oriente Médio que ali se situavam poderiam querer.
 
Há zero e vinte minutos, os soldados já se movimentavam na busca para realizar a missão. A noite seguia na escuridão que avançava sobre tudo e todos. Enquanto tentavam ser invisíveis e mudos, ao longe eram avistados muitos bombardeios que ocorrem contra as cidades mais a frente, ao norte. O pelotão A, como eram chamados já estava bem próximo do alvo e cada soldado prontos para entrar. A cidade de Ticriti, era o problema que tinha que ser enfrentado, de acordo com informações de um contato interno do governo, era onde o alvo se encontrava.
 
Eles avançam lentamente. Dois pelotões de 10 homens cada, que sabem que não podem separar-se de maneira alguma. Farrell, um jovem soldado de apenas 22 anos está ali, com sua metralhadora empunhada e óculos de visão noturna, seguindo vencendo a noite, avançando a minúsculos e calculados passos. Como em todo filme que tem aquela mensagem de apelo, as lembranças do jovem soldado começavam a encher sua mente. Ele via sua mãe Anita, seu pai Jorge, dando alguns conselhos e sua irmã Clara chegando das baladas. Como era boa sua vida, como era boa a vida em New York, apesar da correria infernal, do trânsito caótico e das milhares de pessoas cometendo os mais diversos tipos de devaneios, ali era seu lar e era uma cidade maravilhosa agora via. Aquela multidão rodando sem rumo na Times Square, comprando desenfreadamente, apaixonados, briguentos, mas eles na verdade estavam apenas sendo pessoas livres. Farrell queria se livrar das imagens mais não conseguia.
 
Como em um passe de mágica a vida de Farrell retorna há alguns meses atrás e ele simplesmente esquece que estava no centro de uma guerra e de uma missão que não podia haver falhas. Na sua visão ele estava parado em uma das muitas calçadas nova-iorquinas, próximo a uma poça d’água que refletia seu rosto. Aquela era uma lembrança das muitas madrugadas que ele passava nas ruas sem se nem mesmo avisar aos pobres pais. Ele observa aquilo tudo parecendo que estava de frente para grande tela de cinema, mas o filme era de sua vida. Será que aquilo era o medo? Farrell com certeza não sabia explicar, mas tudo já estava ficando mais que estranho e ele tentava entender isso. Em um estalo de sanidade o jovem soldado entende que estava em outro país, o meio de uma guerra e que seus pais e sua irmã estavam sofrendo muito por sua decisão de alistamento e ida para o Iraque.
 
E o que estava confuso volta a regra da realidade. Farrell se ver caminhando logo atrás do soldado de corpo avantajado, um homem branco que de tão forte, mal dava pra ver seu pescoço e infelizmente se ver no meio de ruas estreitas silenciosas e o pior de tudo perigosas. Inesperadamente um vento gélido surge do nada e junto com ele um medo forte e profundo rasgando a derme de todos. O ar frio bate nos ossos do rosto de Farrell levando ele para os lados e deixando os binóculos a segas. Quando se está com medo, apavorado e sem saber o que fazer nem onde se estar propriamente, nada parece ser comum e só se espera o pior. Os tiros explodindo próximos ao grupo soam para dizer isso.
 
Farrell joga-se no chão, se deparando com uma névoa espessa tomando todo o lugar. Mas como é possível uma névoa no deserto? Pensou Farrel, já certo de que tudo naquela noite era possível. Nada mais importava para ele nem para ninguém, ele tinha apenas que lutar e somente lutar agora. Quando se está no meio do deserto com um calor de cinquenta graus queimando o crânio e secando a pele tudo que se espera é ter um gole de água para beber. Mas quando se está a noite no deserto, no meio de uma guerra, tudo que se quer é um grupo de soldados aliados por perto. Coisa que agora Farrell não tinha. Onde estava o resto da equipe? Os olhos de Farrel varrendo todos os lugares possíveis, seu coração dispara o fazendo lembrar do treinamento duro que teve meses antes: “Nunca fique só, e se ficar não se deixe ser pego. Caso tenha a possibilidade real de ser pego, tire a própria vida”.
 
Os tiros vinham de todas as partes. O novato Farrel só avistava as luzes raivosas das balas, vindo em sua direção. Luzes que ele via verdes por causa dos óculos de visão noturna que usava. Tirar a própria vida não passava nem por um instante na cabeça de Farrell, então a única coisa que restava era lutar. Essa era a hora de revidar cada uma daquelas balas.
 
Inúmeros tiros são disparados e nos ouvidos de Farrel chegavam junto com os zunidos das balas, gritos que para ele eram de soldados mortos, porém não dava para distinguir quem eram se aliados ou inimigos. Os sentimentos que o tomava eram os mais diferentes possíveis: ódio, medo, desespero, dor, perda, eram muitos. Farrell estava só e cada vez mais perdido.
 
Em uma guerra nunca se luta só.
 
Ali no mesmo deserto onde o jovem soldado americano estava, há cem metros dele, um outro jovem, esse iraquiano sentia as mesmas sensações que Farrell.
 
Abdul, 19 anos, nascido em Kirkuk, filho de Hassam Saleh e Kader Attia, era um filho admirável, um aluno exemplar, um garoto até então normal. Foi servir no exército Iraquiano por obrigação. Ou ele iria ou seu velho pai de sessenta e cinco anos. Como a única coisa que ele mais amava era o pai, pois sua mão já era morta, ele estava servindo. Longe de sua cidade natal, tentava defender Ticriti, infelizmente para ele, nunca teve um treinamento adequando para uma guerra daquela magnitude e com um inimigo daquela magnitude. Foram apenas três meses de treinamentos se é que alguém podia chamar aquilo disso, armas falhando de tão velhas. Abdul estava tão perdido quanto Farrell e as únicas coisas que os diferenciavam eram seus uniformes e os lados por qual lutavam.
 
Noite anterior ao início da operação Tempestade no Deserto.
 
- Vocês precisam defender nossa soberania dos ataques desses infiéis – gritava Omar Zebari, o chefe de uma tropa de mais de duzentas crianças – Vamos eliminar todos, eles têm que morrer por Alá.
 
Abdul de verdade não entendia a guerra, nem queria entender, mas nos quatro meses que passou em treinamento viu diversos vídeos com inúmeras coisas erradas praticadas pelos Estados Unidos. Prisões e mais prisões de pessoas que não tinham nada a ver com terrorismo, assassinatos, espancamentos, mortes, destruição de casas e de cidades. Era puro terror, mas terror deles, dos infiéis, Abdul não via ali, outra saída para seu povo a não ser lutar. E assim, quem eram os terroristas? Perguntava-se Abdul.
 
A visão do jovem soldado iraquiano ainda não tinha sido tomada pela névoa densa, até então, pois agora, o bafo da morte envolvia seu corpo e no meio daquela névoa ele se via só, sem seu pelotão e tendo somente sua arma velha para proteger sua vida.
 
Sua voz se perde no meio daquela mistura de medo e desespero. Abdul começa a disparar inquietamente para todos os lados sem ter um alvo definido, sem saber nem mesmo porque atirava. Abdul só sabia que tinha que fazer aquilo, pois agora era por sua vida.
 
Farrell estava suado, olhos arregalados, corpo deitado na terra santa do deserto, tendo como proteção apenas aquele ato da natureza estranho, a nevoa. Ele não entendia por que deixara para trás sua família... Até entendia, mas não queria. Seriam seus inimigos mesmo terroristas desumanos? Ou apenas nossos líderes não queriam achar meios de entendê-los? E por isso, por desejos de alguém ele poderia perder a vida? Sua mente volta para três anos atrás quando ainda não era soldado. Ele lembrava de notícias de homens do Oriente Médio sendo capturados nos Estados Unidos, em bairros de comunidades mulçumanas. Mas será que todos que estavam ali eram desalmados e terroristas? O diálogo parecia ter acabado há muito tempo entre os homens daquelas nações. Mas quantas vidas tiradas eram necessárias para acabar com tal arrogância. Farrell não entendia e muitos menos seu governantes.
 
Abdul também fora tomado pelo passado que entrava lentamente em sua cabeça. Ele era bem pequenino e as brincadeiras com um garoto maior que ele o trazia alegrias. O menino das lembranças era americano, filho de um iraquiano que há muito anos morava nos Estados Unidos. Entre eles não havia diferença de raça, cor, religião, eles só queriam brincar e eram felizes correndo no terreiro de sua velha casa tendo sua mãe ainda viva e o observando. Enquanto as balas cortavam o ar sobre sua cabeça, Abdul realmente não entendia porque tal luta e porque da falta de paz.
 
- Peguei você! Eu disse que era melhor. Eu te falei, não falei?...Eu te falei... – gritava o garoto loiro de olhos azuis.
 
Farrell tem 13 anos, ele salta de alegria no sofá da casa do amigo por ter vencido uma fase de um game de estratégia de guerra. Seu adversário era Abdul, seu melhor amigo que tinha 15 anos, filho de Mohamed, professor na escola de línguas. Moravam no estado americano de Ohaio.
 
- Grande coisa Farrel, na fase anterior quem venceu hein? Quem venceu? – diz Abdul com o controle na mão mostrando certa chateação e alegria. Coisas de amigos.
 
Soltando o controle do game, Abdul corre até a geladeira de sua casa, pega um sorvete de palito e oferece outro para o colega metido a esperto.
 
- Por você ter tirado onda, vou deixar o de morando pra você Farrell e aí, agora quem é o vencedor.
 
Farrell rir. Sorvete de morando era o sabor que ele mais gostava. Abdul é o membro mais inteligente de um clube de escoteiros dirigido por Samuel, pai de Farrel o qual sempre teve muito carinho por Abdul.
 
- Ei meu pai não vai te dar a medalha heim moleque – diz Farrell sorrindo.
 
O dia estava perfeito em Ohaio. Um céu com um esplêndido azul, poucas nuvens e as que por ali passam eram como algodão. Ali não existe névoa, nem cegueira.
 
- Sabe Samuel, seu filho é muito inteligente, um garoto exemplar, interessado e concentrado. Tenho orgulho dele ser o melhor amigo de Abdul.
 
- Eu digo o mesmo amigo, adoro seu filho também e acho muito bom os dois serem amigos. Assim como nós sempre fomos desde que tínhamos a idade deles.
 
Os risos tomam os quatro cantos do bairro, dois homens felizes, com seus filhos também felizes. Do outro lado da rua, duas mulheres desciam de um carro trazendo sacolas de supermercado, elas riem desconsertadamente.
 
- Olha os dois, continuam no mesmo lugar.
 
- É, se deixarmos, eles passam o dia inteiro ali, só contando suas proezas e histórias de pescador.

2 comentários:

Unknown disse...

Intrigante esse conto. De uma forma diferente foi mostrado nele nossas fraquesa, medos e que nem sempre as coisas são oque vemos ou pensamos. Parabens.

Alex Santos disse...

Meus queridos,
hoje poder interpretar histórias, contos, poesias entre tantas outras formas de leitura se tornou muito esqueçido. A correria do dia a dia nos impede de mergulhar no poder da literatura e nos impede de viver um mundo totalmente verdadeiro retratado por palavras tão significativas. Machado de Assis seria um grande apreciador desse blog, mesmo que fuja de suas linhas machadianas, ele estaria aqui presente para contemplar tamanha graça da escrita e da magnitude de seus contos aqui nesse blog tão bem trabalhos e q nos vem apresentar a alegria de ler e de interagir com topícos de nossos dias atuais.
que bom seria se a cada dia eu pudesse estar presente aqui nesse espaço de leitura e literatura.
A voces meus caros escritores fica meu estimo e minhas considerações por serem apreciadores da leitura. Grande abraço!

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Blog criado para divulgar contos e crônicas, pautados nos mais diversos temas, escritos de uma forma mais direta e dinâmica. Sérgio e Crisla buscam assim acabar com o medo daqueles que não se aventuram em ler uma boa história por não quererem enfrentar páginas e mais páginas dos bons livros. Dar emoção em poucas linhas, prender a atenção com uma boa narrativa, são metas que os autores querem alcançar com o blog, onde amor, política, vampiros, agentes secretos e seres mágicos estarão sempre por aqui. Bem vindos ao nosso blog, aproveitem cada texto que criamos e muito obrigado por estarem aqui.