Sentado ao lado da bancada do juiz, Mário fitava o promotor que lhe havia feito uma pergunta e esperava que ele respondesse. Seu semblante guardava o mesmo ar sem esperança e sem vida que lhe acompanha desde um ano atrás. Era como se o fio que o mantinha respirando houvesse sido cortado bruscamente. Ele perdeu o emprego, seus amigos por fim se afastaram e os poucos que restaram parecia que estavam num constante aguardo que ele voltasse a si. Sua esposa não havia ido embora fisicamente, mas ele a havia perdido do mesmo jeito, pois aquela mulher tão divertida e impetuosa havia desaparecido.
Olhando
para o promotor notou que ele repetia a pergunta:
-
Onde você estava na noite do crime Sr. Mário.
Onde
ele estava? Estava onde sempre esteve, todas as noites, desde aquele dia.
Estava procurando sua filha. Sabia que não havia jeito, ele a tinha visto, seu
cérebro viu que ela tinha morrido. Mas ele simplesmente não conseguia admitir
isso para si mesmo. E todas as noites, dia após dia, ele saía de casa e ia
buscá-la para trazê-la de volta.
-
Estava andando na Praça do Bom Jardim. – respondeu com o mesmo fio de voz que
havia substituído sua expressão grave e forte.
-
Estava sim. Todos nós sabemos que você estava lá. As câmeras de segurança mostraram
você lá. Não há como negar.
Olhando
confuso para o promotor, Mário pensou que nunca tinha tido a intenção de negar.
-
Assim como as câmeras também mostraram você chegando perto do restaurante da
praça. Só não conseguiram mostrar quando você sacou sua arma e friamente se
aproximou do homem que estava fechando seu comércio depois de uma semana cheia
e lhe deu um tiro certeiro na cabeça.
-
Protesto meretíssimo. O colega está fazendo afirmações e não perguntas. Ele
está simplesmente jogando suas conclusões no meu cliente, que ainda não foram
provadas.
O
juiz, olhando com uma expressão severa, fala serenamente:
-
Por favor, promotor faça apenas perguntas ao réu.
-
Perdão meretíssimo, - fala o promotor, olhando com desprezo para o advogado de
defesa – estava apenas pensando alto, eu creio. Não acontecerá novamente.
- Então Sr. Mário, o senhor viu o comerciante
André fechando seu comércio naquela noite?
-
Sim, eu vi. – responde Mário simplesmente.
-
Mas infelizmente depois daquele momento ninguém nunca mais o viu com vida não é
mesmo?
-
Promotor Costa, por favor, não faça mais suposições. Não me obrigue a ter de
retirá-lo da sala. Faça perguntas diretas. – fala novamente o juiz.
Mário
se lembra daquela noite a cerca de quatro meses. Quando saiu, sua mulher implorou
que ele trouxesse Camila de volta. Era tarde e os dias estavam muito perigosos
para ela andar sozinha por aí. Então como todas as noites ele saiu e como todas
as noites, voltaria de mãos vazias e choraria nos braços da esposa:
-
Eu cheguei tarde querida, – repetia noite após noite – ele já a tinha pego. Eu
cheguei tarde.
Camila
tinha dezessete anos e estava prestes a terminar o ensino médio. Sonhava com a
faculdade de gastronomia que ia fazer. Secretamente tinha planos de fazer
intercâmbio na França, mas não tinha tido coragem de contar aos pais. Sua mãe
descobriu certa vez ao ouvir por acaso uma conversa sua com uma amiga.
Depois
de muito discutirem ela e o marido haviam decidido deixá-la ir, mas apenas
quando completasse dezoito anos. Claro que Mário, sendo super-protetor como
qualquer pai policial não iria apenas deixá-la ir morar com pessoas estranhas.
Mas lá no país, morava um tio muito próximo e tão ciumento com as filhas quanto
ele próprio. Sabia que seria seguro deixá-la ir.
Haviam
combinado de lhe dar a notícia em seu aniversário de dezoito anos que ocorreria
dentro de três semanas. Ela iria vibrar. Mas não pôde.
O
Promotor ciente que já estava no limite da paciência do juiz, resolver fazer a
última pergunta que seria decisiva naquele caso. Sabia que aquele policial
havia matado o comerciante, as provas eram inegáveis embora, por um golpe do
destino, as câmeras não o tivessem filmado no momento da ação. A próxima
pergunta que faria seria sua última e seria decisiva. Se ele negasse poderia no
ato seguinte trazer os peritos que lhe provariam sem sombras de dúvidas que
estava mentindo e se falasse a verdade seria uma confissão, fazendo tudo
terminar ali.
-
Sr. Mário, tenho apenas mais uma pergunta a lhe fazer. O Sr. atirou no
comerciante naquela noite? O senhor assassinou o Sr. André na noite do dia 25
de junho de 2009?
Olhando
para o promotor, várias cenas lhe passaram pela cabeça, cenas de alguns minutos
atrás vieram primeiro. Era seu advogado de defesa lhe orientando sobre o que
responder. Ele havia falado que as provas eram circunstanciais, que apenas a
confissão elucidaria o caso por completo. Então lhe propôs um acordo.
O
advogado conhecia todo o histórico do crime, sabia dos motivos, sabia o quanto
abalado Mário ficara. Disse que ele deveria confessar quando o promotor
perguntasse que depois ele negociaria um abrandamento da pena pelas
circunstâncias especiais que envolveram o crime.
Como
naquele momento, as imagens das tais circunstâncias especiais vieram à mente de
Mário.
Era
uma noite de rotina. Ele estava de plantão e sua esposa havia ligado pedindo
que ele fizesse uma ronda nas imediações da casa de uma amiga da Camila, pois
ela tinha ido dormir lá. Era uma rotina deles. Exagero eles sabiam. Era uma
espécie de segredo. Se ela ficasse sabendo, ficaria furiosa.
Passando
lá viu sua filha e uma amiga saindo de casa. Tentou disfarçar, mas a filha lhe
viu e acenou. Então ele percebeu que Camila sempre soube da rotina dos pais.
Mandando um beijinho ela saiu rindo com a amiga. Foi a última vez que ele viu
seu sorriso.
Já
estava a umas duas quadras quando ouviu o som da batida. Na verdade, lembrando
daquele momento, ele percebeu que seu coração sentiu antes que seus ouvidos
pudessem ouvir os gritos e a freada brusca.
Dando
uma guinada foi em direção ao local do acidente sem que ninguém precisasse lhe
dizer onde tinha sido. Sem ninguém precisar chamá-lo. Quando chegou ao local,
um vizinho ainda estava chamando a ambulância, mas ao se aproximar do carro que
havia batido num poste sabia que era em vão.
Fumaça
saía do motor do carro e de relance apenas percebeu que só havia uma pessoa
dentro. A amiga de Camila chorava desesperada sendo amparada por uma senhora.
Sem querer ver e ao mesmo tempo sem conseguir desviar os olhos da cena à sua
frente foi se aproximando lentamente de um corpo sem vida estendido no meio do
asfalto.
Naquele
momento foi quando sua alma deve ter saído de seu corpo, por que por mais que
aquela lembrança ainda estivesse viva na sua memória, simplesmente não
conseguia absorver o que aquilo significava. Ali estava ela, sua menina, sua
princesa, a pessoa por quem daria a vida sem sequer pensar em qualquer coisa.
Sem vida, ensangüentada e machucada. Sua doce Camila.
Sua
mente voltou então para o motorista do carro. Estava completamente bêbado. Não
havia sofrido sequer um arranhão e discutia com seu parceiro dizendo que as
meninas haviam surgido do nada, que ele não tinha culpa.
-
Sim eu matei aquele homem. – responde Mário, por fim sabendo que nunca seria
capaz de negar.
-
Seu assassino desgraçado.
Como
se levasse uma tapa na cara Mário levantou os olhos e viu uma mulher entre
lágrimas que lhe trazia alguma coisa familiar. Rapidamente um jovem abraçou a
mulher e a confortou baixinho lançando para o homem um olhar de fúria que ele
também reconheceu.
Era
a si mesmo que via ali. Seu desespero no rosto da mulher que ele percebeu ser a
esposa de André, o assassino de sua filha. Nunca o imaginara como um ser
humano. Para Mário, André era apenas um monstro sem família, sem vida alguma.
Nada mais além do fato de ter matado sua filha.
E
nos olhos do rapaz ele entendeu aquele sentimento. Agora o monstro era ele.
Fora Mário que havia destruído uma família, dessa vez era Mário, o assassino, o
monstro, a personificação do ódio e desprezo.
Um comentário:
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